O telefone total de Rinus Michels
Treinador do Ajax campeão europeu em 1971 e da selecção holandesa campeã europeia em 1988, o esfíngico Rinus Michel acumula tanto de genial na condução de uma equipa de futebol como de intratável no relacionamento com a generalidade das pessoas. Mesmo durante um jogo, é difícil descortinar a mais pequena emoção no rosto fechado e por demais gélido à vista de qualquer câmara de televisão. A excepção ocorre na célebre final do Euro-88 vs URSS, quando Van Basten tem aquele momento de inspiração e marca um golo impossível a Dassaev. Aí, uma breve chispa ilumina-lhe o olhar e um ligeiríssimo sorriso assoma-lhe aos lábios. E tudo acontece num dia em que ganha a outro treinador da mesma cepa, o enigmático Valeri Lobanovsky.
Sou testemunha do estilo inconfundível de Rinus. Em 1999, por ocasião de um trabalho para o Record sobre o cinquentenário do jornal, telefono-lhe quase às dez da noite para casa. Na altura, admito-o sem rodeios, nem sequer penso na diferença horária em relação à Holanda (uma hora a mais). A resposta do outro lado tarda a chegar e só a ausência de um atendedor de chamadas proporciona essa demora. Atende-nos a mulher que, com um ar ensonado, passa ao marido. Agora sim, estávamos a falar com Rinus Michels, o homem do futebol total da laranja mecânica.
A conversa não corre como esperado, e é curta, bastante curta: ele ouve-nos pacientemente e responde-nos com um ‘é tarde’ mais um abrupto tlimmm de telefone desligado. Lição número um: ninguém telefona às 2245 para a Holanda (coffee shops excluídas, claro). Lição número dois: na casa de Rinus Michels reina o futebol total, não o telefone total.
No dia seguinte, já a horas mais decentes (1530 em Lisboa Continental, 1630 na Holanda), volto a telefonar-lhe. Voam desculpas e justificações. Lá de longe (e do alto da sua autoridade), ouve-nos, agradece-nos e não quer saber da entrevista para nada. Seja, ainda hoje guardo o Rinus Michels na memória – e no coração, ainda que na ‘divisão de honra’.