Argentina Matateu. “O meu pai quis imitar o Stanley Matthews”
Para já, a pergunta sacramental: quem é Matateu? Um fenómeno sem a alegria de um título de campeão nacional – em 1954-55, o Sporting empata 2-2 nas Salésias, na última jornada, com um golo aos 86 minutos, e rouba o título ao Belenenses, em favor do Benfica. É grande, musculoso e encorpado. Impõe-se facilmente pelo físico e destoa dos demais pelo arranque, pelas passadas com a bola controlada, pelo remate forte ou em jeito, pelo drible curto. Dentro da área, é costume vê-lo em fintas curtas para afastar dois, três, quatro adversários, os que fossem. É uma força da natureza. Para além de marcar golos a torto e a direito [218 em 289 jogos na 1.ª Divisão], muitos deles impossíveis, outros banais, que lhe garantem o título de melhor marcador em duas ocasiões [1952-53 e 1954-55], é um autêntico quebra-cabeças. Equipas como Sporting, FC Porto e Benfica marcam-no homem a homem num tempo em que nem se pensa nessas modernices.
Matateu chega a Portugal no dia 4 Setembro 1951 com um contrato de fazer rir e, ao mesmo tempo, corar de vergonha os atuais jogadores [30 contos de luvas e 1.600 escudos de salário por mês]. Na estreia oficial, para a primeira jornada do campeonato, o Belenenses ganha 4-3 ao Sporting nas Salésias com dois golos de Matateu, o último dos quais aos 88 minutos. É carregado em ombros pelos adeptos até aos balneários e é endeusado pela imprensa nacional, hipnotizada pela categoria ímpar dos movimentos daquele avançado. Cola-se-lhe a alcunha de astro.
A da oitava maravilha só nasce em Maio 1955, quando a Inglaterra perde pela primeira vez com Portugal (3-1 no Jamor) e o enviado-especial do Daily Sketch, um tablóide de Manchester, descreve Matateu da seguinte forma: “Um negro sempre sorridente, de Moçambique, é, esta noite, o rei do futebol português, Em Moçambique foi-lhe dado o nome de Lucas, mas há muito tempo que já ninguém se preocupa com isso. Passaram-lhe a chamar Matateu – um cognome que significa oitava maravilha do mundo – desde que começou a driblar como um mago e a chutar como um canhão. Fomos derrotados por essa oitava maravilha do futebol que rebaixou e humilhou uma Inglaterra destroçada e inebriada. E não há justificação porque, com exceção do maravilhoso Matateu, o grupo português é uma equipa de passeantes, com apenas uma vitória nos últimos 19 jogos.”
A “coisa” promete. Ai promete promete. Nesse mesmo ano de 1955, Matateu é eleito pela imprensa como o melhor jogador da Taça Latina, precursora da Taça dos Campeões, à frente de Di Stéfano e Puskas, ambos do Real Madrid. Como titulava a revista “Miroir Sprint”, “Di Stéfano perdeu o sorriso frente a Matateu”. Em 1957, o Belenenses faz uma digressão pelo Brasil e joga com um misto Vasco-Santos no Maracanã, onde Matateu atira três bolas à barra antes de um jovem chamado Pelé marcar os seus primeiros golos internacionais. Só para acabar, em 1959, num RDA-Portugal de qualificação para o Europeu, o nome de Matateu é entoado por militares alemães que o rodeiam no final do jogo, ao ponto de ele perguntar ao jornalista Aurélio Márcio: “Vistes os russos a chamar pelo meu nome?”
Entramos nos anos 60 e Matateu continua fulgurante. Marca ao Sporting na final da Taça de Portugal (2-1 para o Belenenses) antes de ser despromovido para as reservas pelo treinador Fernando Vaz. Sem oportunidades no Restelo, a sua vida ganha novo fôlego na Tapadinha. Em 1966, aos 38 anos de idade, os 23 golos de Matateu garantem o Atlético na 1.ª divisão. Só lhe foge o título de campeão da 2.ª, na finalíssima com a Sanjoanense (é dele o golo nos descontos, 2-1). Na 14.ª e última época na 1.ª divisão, Matateu, já com 39 anos, comete a proeza de marcar nove golos, cinco deles em Outubro e a dois grandes (Porto e Benfica). No posterior ping-pong entre Portugal (Gouveia, Amora e Chaves) e Américas (First Portugueses e Sagres da Vitória), só acaba a carreira aos 55 anos. É o nosso Stanley Matthews? No way, o Stanley Matthews é que é o Matateu inglês. Ai não? Se o bom do Stanley só se aguenta até aos 50 e o Matateu vai até aos 55, quem é quem nesta história?
Bom, a lenga-lenga histórica tem a ver com o dia 26 Julho 2017. Faz hoje 90 anos que Matateu vem ao mundo, razão pela qual fomos ao encontro da filha da oitava maravilha. Argentina, de seu nome. Como? Isso mesmo, Argentina. Como o país sul-americano. Mais à frente, já vai entender o porquê. Sorridente como o pai e elegante como a mãe, a senhora Argentina tem 62 anos e trabalha há 14 no museu do Belenenses, bem perto das memórias gloriosas do pai, seja através de camisolas, prémios individuais, recortes de jornal ou até do restaurante com o seu nome. Vamos lá, 3, 2, 1…
Argentina é filha de Matateu e de?
A minha mãe é portuguesa, de Setúbal, e conheceu o meu pai através de um irmão dela, que era sócio do Belenenses. Conheceram-se, houve um choquezito qualquer e ficaram apaixonados ali, naquele momento. Há pessoas que duvidam do amor deles, mas posso dizer que foi genuíno.
Duvidam porquê?
Estiveram casados muito pouco tempo.
Quanto?
Três anos. Quero dizer, no papel, eles até estiveram casados mais tempo, só que separaram-se quando eu tinha três anos.
Então?
O meu pai eram um homem muito extrovertido e aquilo não combinava muito com a minha mãe.
E viviam em Lisboa?
Aqui ao lado [Argentina aponta para o lado direito], no estádio.
A sério?
Por cima das piscinas, sabe onde é? Antigamente, havia um bairrozito com seis ou sete casas para os jogadores. Assim vivia-se o clube dia e noite. Foi uma ideia do major Baptista da Silva, um belenense dos sete costados.
Lembra-se desses tempos?
Não, só tinha seis meses. A minha mãe é que me conta. Depois fomos para a Ajuda, na Calçada do Galvão. Então foi assim: eles conheceram-se, casaram-se e tiveram-me.
E porquê o seu nome Argentina?
Qual é o problema?
É invulgar.
Não é nada, há bastantes Argentinas, umas seis ou sete em Portugal. Pelo menos, é o que diz o meu BI. Nasci num dia de jogo, um domingo, 28 Novembro 1954.
Qual jogo?
Pois, é isso: Portugal-Argentina no Jamor. O meu pai estava a jogar e, ao intervalo, anunciaram o nascimento de uma menina, filha do Matateu.
Anunciaram?
Através dos altifalantes do estádio.
Uma menina sem nome, ainda?
Como ainda não havia ecografias, a dúvida era rapaz ou rapariga. Uma vez definido o sexo, passou-se à escolha do nome e o jornal A Bola sugeriu o nome de Argentina ao Matateu e ao meu padrinho, um senhor muito importante do Belenenses chamado Manuel Vacondeus. Sabe como é, publicidade e tal. O meu pai aceitou e fiz-me Argentina. Se jogássemos nesse dia com o Japão, ficava Japão.
Ainda bem que não foi Burquina Faso.
Ahahahahahahahah, valha-me Deus. Aí, mudava.
E a sua mãe concordou com o nome?
Sim, ia fazer o quê?
E o Matateu queria uma rapariga?
Nãããão, queria um rapaz. Claro. Já reparou que os grandes jogadores nascidos em Lourenço Marques só tiveram meninas: uma para Matateu, uma para o Mário Wilson, duas para o Eusébio e mais duas para o Coluna.
Beeeeem, que coincidência. O que se lembra do Matateu?
Acompanhou-me sempre, ia buscar-me ao colégio.
Qual?
O São João de Deus. E fui batizada na Igreja São João de Deus. Nessa mesma avenida, morava o tal Vacondeus e almoçava muitas vezes na casa dele. O meu pai sempre foi um pai presente, muito presente. Quando ia para fora do país, ligava-me a avisar que ia ausentar-me por tantos dias. De resto, queria sempre estar comigo.
Em casa dele?
O meu pai nunca teve uma casa fixa, andava sempre a saltitar, na casa deste, daquele, do outro. Ele era assim por natureza.
E levava-a aos jogos?
Sempre, trazia-me sempre para o Restelo em dia de jogo. Enquanto ele jogava, eu estava acompanhada pelo José João, um senhor forte, empregado do Belenenses, ou então pelo Vasco, o fotógrafo do Belenenses, que tirou aquela célebre foto ao meu pai.
Qual?
A do pontapé de bicicleta. Foi o melhor momento do Vasco e o do Matateu.
Lembra-se de ouvir piropos?
Uyyyyyyy, então não? Tanto aqui, no Restelo, como fora do estádio. As tardes no Pomarense, ali na Avenida da Liberdade, eram infinitas. Mal ele chegava, as pessoas animavam-se e aproximavam-se da nossa mesa para pedir autógrafos nos guardanapos, na parte da frente das camisolas, nas costas, onde fosse. A Avenida da Liberdade ganhava outra vida, não tenha dúvidas ò Rui.
Maravilha.
Às vezes, vou lá acima e fico a olhar para o relvado a lembrar-me deste estádio completamente abarrotado, a lembrar-me de um determinado golo do meu pai, a lembrar-me da invasão de campo por parte dos adeptos, a lembrar-me de tudo.
Lembra-se de golos específicos?
Não, isso já não. Nunca fui à bola com a bola. Gostava do futebol porque estava lá o meu pai, nada mais me agarrava.
Até que idade é que viu o Matateu jogar aqui no Restelo?
Até aos dez anos.
Então?
Ele saiu para o Canadá e eu fui para Angola.
Com quem?
Com a minha mãe e o meu padrasto, que era tropa da Força Aérea.
Como mantiveram o contacto?
Através de cartas, muitas cartas. Numa delas, pedi-lhe autorização para casar.
Boa.
Ele não me deu a autorização.
A sério?
Não deu, não. Só tinha 18 anos e ele achava-me muita nova. Então, a minha mãe teve de me comprar o casamento porque o meu pai não aceitava a ideia.
O que é isso de comprar o casamento?
Uyyyy, uma trabalheira imensa que mete tribunais e autoridade. Foi em 1974 e só pensava em sair de Luanda para regressar a Portugal.
Porquê?
Por causa da guerra colonial.
E veio?
Siiiiiim, claro.
E o contacto com o Matateu manteve-se?
Sempre. Ele até me disse muitas vezes para ir viver para o Canadá.
Que tal essa ideia?
Nunca tive espírito de emigrante. Nasci aqui, em Portugal, e estou bem aqui.
Nem visitas de cortesia?
O Matateu também veio cá. Até para conhecer os netos António Sérgio e João Carlos. Salvo erro, em 1987. A convite do Belenenses.
Quantos anos sem se verem?
Uns vinte-e-tal. Foi uma experiência maravilhosa, andámos para cá e para lá. Viemos aqui ao estádio, fomos rever amigos, amigas. Boas memórias. Ele voltou a Portugal uns anos depois, já a Cláudia tinha dois anos.
A Cláudia?
Tenho três filhos, dois do primeiro casamento mais a Cláudia do segundo.
E a Argentina nunca foi ao Canadá?
Fui, pois. A última vez foi a mais dolorosa.
Porquê?
O meu pai estava muito mal. Telefonaram-me à minha procura, no dia em que um jornal estava a tentar encontrar a filha do Matateu porque o meu pai tinha sido encontrado por amigos no chão da cozinha da casa dele e foi levado para um hospital. Aí, ele disse que desejava mais que tudo a visita da filha e do irmão.
O Vicente?
Esse mesmo, um amor de pessoa. E tão diferente do irmão. O meu pai era extrovertido, o Vicente introvertido. O meu pai estava sempre a rir-se, o Vicente é mais recatado.
Foram ao Canadá?
Claro que sim. No hospital, que mais se parecia um hotel de cinco estrelas tal o conforto, foram diagnosticados dois cancros ao meu pai: um de sangue, leucemia, outro dos ossos.
O Matateu estava lúcido?
Nos primeiros dias, sim. E brincava imenso connosco.
A fazer o quê?
A contar anedotas. Ele divertia-se a contá-las e depois ainda se ria mais que os outros. E falava muito da horta.
Horta?
Ele tinha uma horta lá em casa, no Canadá, e só se alimentava dela: batatas, cenouras, alface. Era escolher. E ele era poupado. Se tivesse cinco batatas e só comesse quatro ao almoço, guardava a que sobrava para a refeição seguinte.
Estiveram lá quanto tempo?
Dez, onze dias. Nós passámos lá o Natal de 1999 mais a passagem de ano. Quando voltámos a Portugal, ele começou a piorar e, no dia 27 Janeiro 2000, recebemos a notícia da morte dele.
O que é que gostava de fazer no seu dia a dia?
Adorava pesca. E ia pescar ali no Tejo, com o Vitinho.
E gostava de comer?
Cozido à portuguesa, acima de tudo. Pezinhos de porco, também. E uma cabeça de peixe. Nunca vi um homem comer os olhos do peixe como ele. Íamos ao Restaurante A Paz, na Ajuda, e o senhor já sabia que tinha de arranjar uma cabeça com olhos bons.
E beber?
Cervejola. Sempre, nunca o vi beber outra coisa. Gostava mesmo, adorava. Perguntava-lhe como é que ele aguentava tanto e ele ria-se a dizer ‘sai-me pelos poros, é o efeito da transpiração’.
A Argentina dava-se com amigos dele?
Tantos, tantos, tantos. Ia com eles para os copos.
Como assim?
Eles levavam-me ao Ribadouro, ali na Avenida da Liberdade. Enquanto bebiam cerveja, metiam-me uma taça com gasosa com um bocadinho de nada de cerveja.
Tinha quantos anos, a Argentina?
Uns sete.
Sete?
Ah pois, ahahahah. A minha mãe ficava danada, ahahahah. Aquilo eram tarde imensas, até às sete da noite. Às vezes, ia conhecer as amigas dele. Por interesse dele e também delas. Lembro-me de uma em específico, muito bonita, que se chamava Catalina
E os nomes dos amigos?
Yaúca, Estêvão, Eusébio, Coluna, Wilson, Olhe, o Eusébio chamava ‘pai’ ao Matateu, veja bem. Foi o meu pai que começou a jogar com o Eusébio, nas ruas de Lourenço Marques, porque a diferença entre os dois era de 15 anos. Quando se encontraram finalmente em Portugal, foi uma alegria imensa. Que pena não terem jogado juntos na selecção. O meu pai marcou 13 golos em 27 jogos por Portugal, era o terror dos guarda-redes.
Ele sentia mais prazer em marcar a algum clube?
Bastava-lhe marcar. Ele dizia-me ‘um jogo sem um golo meu não é jogo’.
E qual era o objetivo dele?
Sempre quis jogar o mais tempo possível, passar os 50 anos e imitar aquele inglês, o Stanley Matthews.
E conseguiu, claramente.
O meu pai foi até aos 55 anos, lá em Toronto.
É dose, 55.
A disponibilidade dele para jogar parecia inesgotável. Já depois dos 30 anos de idade, ganhou uma Taça de Portugal pelo Belenenses e subiu à 1.ª divisão pelo Atlético.
Eu vi, eu vi: 23 golos pelo Atlético, campeão da zona sul.
Foram tempos gloriosos para o meu pai, já viu? Quando estava em Luanda e ele no Canadá, nunca me senti separada porque as notícias sobre ele não paravam de sair. Era costume os meus amigos angolanos falarem-me do Matateu isto, o Matateu aquilo. Nunca parava.
Muitos anos em Portugal também ajudaram, não foi?
Ele chegou aqui em 1951 e não tinha a quarta classe. Teve de a fazer para começar a jogar na 1.ª divisão. Ao que parece, era necessário o mínimo da quarta classe para entrar em campo. E sabe a história do Porto, não sabe?
Não.
Quando ele chegou a Portugal, o FC Porto estava à espera dele na esperança de o levar.
Uiiii.
Ele manteve-se fiel ao Belenenses. Aliás, ele já jogava no 1.º de Maio, filial do Belenenses em Moçambique. Sempre foi fiel ao Belenenses. E há um exemplo claro disso mesmo.
Qual?
Já nos anos 80, ele veio cá a convite do Belenenses e, à saída, o clube quis dar-lhe 500 contos. Bem, ele chegou aquilo uma afronta e recusou. Escreveu-me cartas a dizer que não queria receber dinheiro do Belenenses por situações ingratas do passado. No aeroporto, disse mesmo uma coisas inapropriadas sobre o Belenenses.
E depois?
No nosso último dia, ele disse-me para transmitir ao Belenenses que já não estava chateado, que eram águas passadas. O meu pai morreu em paz e com o Belenenses no coração.
in Observador, Set 2017