Jaime Graça. ‘O Eusébio até ficou branco, nem falava tal foi o susto’

Mais You Talkin' To Me? 05/21/2021
Tovar FC

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Jaime Graça. ‘O Eusébio até ficou branco, nem falava tal foi o susto’

À conta dos seus dribles desconcertantes, brilha no Vitória de Setúbal e no Benfica. Aos 15 anos, vai treinar ao Bonfim e agrada de imediato. De tal maneira que os dirigentes querem assinar contrato naquele instante. Apoiado pelo irmão mais velho Emídio Graça, internacional português e a jogar no Sevilha, deixa o assunto arrefecer e vai para o Palmelense. Só dois anos depois é que regressa a Setúbal para ficar no plantel. É um dos responsáveis pela subida à 1ª divisão em 1961-62 e pela vitória na Taça de Portugal em 1964-65 (3-1 ao Benfica), na qual marca um golo e seca o capitão Coluna.

É convocado para o Mundial-66. Estreia-se na fase de qualificação, com a Turquia, e beneficia da lesão de Fernando Mendes para se assumir como titular indiscutível dos Magriços. Em Inglaterra, recebe a melhor notícia através de um telefonema da esposa: já se pode considerar jogador do Benfica. Na Luz, joga nove épocas que valem sete campeonatos nacionais e mais três Taças de Portugal. Além disso, marca o golo do empate na final da Taça dos Campeões-68, que cala Wembley e adia a decisão para o prolongamento, ganho pelo Manchester United por 4-1. Despede-se do Benfica com a faixa de campeão em 1975, antes de acabar a carreira no Vitória, em Setúbal. Segue a carreira de treinador, onde é adjunto de José Torres no Mundial-86, treina Pauleta no Operário e é bicampeão nacional de juniores pelo Benfica.

Aos 69 anos de idade, recém-operado ao cérebro no Hospital São José, tem uma vida cheia de histórias, e a mais épica não é num relvado de futebol. É no balneário, quando vira herói nacional ao salvar Eusébio, Malta da Silva e Camolas da morte, num curto-circuito durante a sessão de hidromassagem. Rápido e com conhecimentos de electricidade, Jaime Graça desliga o quadro.

Boa tarde. Como vai?

Eu estou bem, e o senhor? Já agora, quem fala?

Desculpe. Fala Rui Miguel Tovar, do jornal i. Estou a falar com o Catalunha, não estou?

[risos] Há quanto tempo não me diziam isso. O Catalunha? Onde é que foi desencantar isso?

Isso pergunto-lhe eu.

Na altura em que era mais novo, jogava futebol e também hóquei em patins.

Em Setúbal?

Sim, e por brincadeira. Nada oficial. Naqueles tempos, o Barcelona tinha uma equipa fortíssima no hóquei. Um dia, viram-me jogar e chamaram-me Catalunha. Pegou. E, pelos vistos, dura até hoje.

O Catalunha joga cinco épocas no Vitória e ganha uma Taça de Portugal ao Benfica em 1965. Lembra-se desse jogo?

Sim claro, marquei um golo. Bonito, por sinal. Aliás, nessa tarde, todos os nossos golos foram bonitos. Mas também me lembro de uma outra final entre Vitória e Benfica.

Então?

Em 1962. Nesse ano, o Vitória sobe à 1ª divisão e ainda vai à final. Mas perdemos 3-0. Do outro lado, estava o Eusébio sabe? Assim era complicado… Marcou-nos dois golos, o primeiro e o último.

Então quando vai para o Benfica é um alívio?

[risos comedidos] De certa maneira, sim. Com ele na minha equipa, é tudo mais fácil. Repare que fui campeão sete vezes em nove anos. Só perdi dois campeonatos para o Sporting.

Um deles em 1966, ano de Mundial. Do que é que se lembra desse Mundial?

Lembro-me da minha estreia com a Turquia, na fase de qualificação, em Janeiro de 1965. Marquei um golo na vitória por 5-1 e fui eleito o melhor em campo. Toda a gente falava de mim e a minha influência dentro da selecção foi crescendo, crescendo até chegar o Mundial. Aí, dividia o meio-campo com o Coluna. À nossa frente, José Augusto, Torres, Eusébio e Simões.

No jogo com o Brasil, sempre acusaram o Morais de ter posto o Pelé fora de campo.

Eles quiseram arranjar um bode expiatório para justificar a derrota com Portugal e a saída do Mundial logo na fase de grupos. Digo-lhe uma coisa: eles não jogaram nada naquele Mundial. Não sei porquê mas que jogaram mal, lá isso jogaram. E gozavam connosco, porque diziam sistematicamente que jogávamos de tamancos ou de sandálias, em tom depreciativo. Ora bem, isso fez-nos ficar ainda mais fortes porque mexeu com o nosso orgulho. Chegada a hora da verdade e 3-1.

O jogo seguinte é com a Coreia do Norte.

Já estava 3-0 para eles e eu ainda nem tinha tocado na bola. Mas eles não foram muito inteligentes. Primeiro, não demoravam tempo a repor a bola, era tudo para a frente. E depois pensavam que iam dar 10-0. Estavam mesmo convencidos disso. Mas então onde é uma selecção sem experiência pode jogar daquela maneira frenética durante os 90 minutos? O Eusébio acalmou-os com dois golos. Ao intervalo, o Eusébio estava cheio de confiança na reviravolta. E o Otto [Glória, seleccionador nacional] também. Tivemos todos uma conversa e demos a volta sem demora: 5-3.

Veio então a Inglaterra, em Wembley.

Tcchiiiiiiii. Nem me fale nesse estádio que é maldito. Wembley, o que dizer? Nunca mais. Joguei lá uma final europeia e perdi.

Com um golo seu.

Sim, mas perdemos. E o Eusébio que acertou no guarda-redes no último minuto naquele lance. Quando o vejo, digo-lhe sempre ‘marcaste tantos golos, porque é que não marcaste aquele?” [gargalhadas] E Wembley também representa uma derrota por 1-0 num particular e essa meia-final perdida para a Inglaterra. Estávamos todos partidos fisicamente. E depois a ideia da FIFA em mudar o local de Liverpool para Londres um dia antes do jogo também não ajuda em nada.

A Inglaterra de 1966 e o Manchester United de 1968 têm uma coisa em comum: Nobby Stiles.

E o Bobby Charlton, mas percebo o que quer dizer. O Stiles era mau. O Eusébio tinha medo dele. Naturalmente, era um chato, uma carraça e fazia tudo e mais alguma coisa com o árbitro longe.

O Eusébio, mais uma vez. Lembra-se do dia em que lhe salvou a vida?

Claro [silêncio]

Faz agora 45 anos.

Sim, bem sei. Tínhamos ganho à Sanjoanense em São João da Madeira [4 de Dezembro de 1966] e estávamos em banhos e massagens quando houve um curto-circuito. A malta que estava no tanque sofreu bastante.

Como é que teve calma e discernimento para desligar o quadro?

Fui electricista em Setúbal durante alguns anos. Fui rápido e decidido. Desliguei o quadro. Aqueles que estavam no fundo no tanque foram os que mais sofreram, como o Carmo Pais e o Malta da Silva. O Camolas, por exemplo, fugiu para o relvado. Veja lá, tão grande foi o susto. Ainda hoje quando me vê, o Malta da Silva faz questão de me apresentar como o homem que lhe salvou a vida. Ele e o Carmo Pais sofreram muito e tiveram de estar duas horas deitados no chão, a serem inspeccionados pelos médicos.

E o Eusébio?

Também estava nesse tanque. Ele até ficou branco. Nem falava, tal foi o susto.

Já o Luciano…

Era um miúdo, tinha vindo da província e estava a afirmar-se. Como disse, quem estava no fundo do tanque, sofreu mais. A corrente passou e matou o Luciano. Foi uma desgraça. O Benfica parou. O país parou. Fomos todos ao seu funeral em Olhão.

E o regresso a casa?

Foi difícil, como seria de esperar. Estávamos todos transtornados, sem saber o que dizer e fazer. O tempo e a cabeça ajuda-nos a ultrapassar as dificuldades.

Por falar em dificuldades, o que se passou naquele dia em que teve um aparatoso acidente de viação?

Eu jogava no Benfica mas vivia em Setúbal. Um dia, estava já atrasado para o treino e o Hagan [Jimmy, treinador inglês] não perdoava um minuto de atraso. Então, acelerei e bati.

Onde?

Ali, no Estádio Nacional.

Ia a quanto?

140 km/h.

Magoou-se?

Muito. Na cara, nos braços… nem lhe conto. Estive quase dois anos afastado do futebol, mas depois voltei.

E o Jimmy Hagan?

Boa pergunta. Ele era terrível com atrasos aos treinos.

Foi treinado por ele e também por Pedroto. É um privilegiado?

Sim, sou.

Qual era a diferença entre os dois?

Hagan era muito rigoroso e meticuloso com o físico dos jogadores, o Pedroto era extremamente táctico. Muitas vezes, o Hagan dava a táctica e eu e o Simões, como capitães do Benfica, mudávamos completamente aquilo logo na primeira parte. Aliás, na Europa, nem sempre fomos mais longe por causa do desacerto táctico do Hagan.

Quando se decide em sair do Benfica?

No dia em que venci o sétimo campeonato pelo Benfica, salvo erro com a CUF, disse ao Borges Coutinho [presidente do Benfica] que já não queria jogar mais lá, no Benfica. Já não tinha idade para aquilo. Era preciso um jogador mais fresco.

E o Borges Coutinho?

Deixou-me sair. Voltei para o Vitória. Lá, podia empatar ou perder, as exigências são diferentes. No Benfica, só a vitória é que interessa. Ainda hoje é esse o lema dos grandes. Ganhar, ganhar e ganhar.

Como foi o regresso a casa?

Um descanso, uma alegria imensa. Na minha equipa, joguei com um miúdo chamado Diamantino [futuro capitão do Benfica]. Eu era 20 anos mais velho que ele. Mas também vivi o contrário, quando joguei com o meu irmão Emídio Graça, 11 anos mais velho que eu.

O Emídio vai para o Sevilha, não é?

Sim, em 1958.

Você visitava-o?

Sim, íamos de carro de Setúbal para Sevilha. Não havia cá aviões nem comboios. Era uma aventura. Dormia lá na casa dele, ia ao estádio ver os jogos.

Quando abandona a carreira de futebolista, o Jaime Graça faz-se treinador e até esteve nos Açores.

É verdade, foi lá que conheci o Pauleta. Um fenómeno. No Operário. Ele marcava golos de todo o lado, de qualquer maneira e feitio, fosse num relvado ou num pelado. Disse-lhe então que fizesse um DVD com os golos para enviar para o continente para arranjar um clube com maior dimensão. Por sorte, calhou-nos o Estrela da Amadora na Taça de Portugal. Antes do jogo, o João Alves, treinador deles, pergunta-me quem era bom na minha equipa. Falei-lhe no Pauleta, evidente. Por ironia do destino, ele marca o 1-0. O resto já todos sabem. E o João Alves levou-o para o Salamanca.

Ainda hoje fala com o Pauleta?

Sim, trocamos sempre mensagens de boas festas e de parabéns.

Também foi adjunto do Torres no Mundial-86.

A nossa qualificação foi boa. Melhor que a da fase final. Afinal, conseguimos ganhar à RFA, no estádio deles. Mas atenção: se o Jordão não falhasse aquele penálti com a Suécia, não precisávamos desse golo Carlos Manuel em Estugarda.

Portanto, qualificado Portugal para um Mundial 20 anos depois e descoberto o Pauleta nos Açores, só lhe falta ganhar títulos no Vitória ou no Benfica. Para quando?

Já ganhei.

Então?

Ah pois é, fui campeão, aliás bicampeão nacional de juvenis.

Com quem?

Hugo Leal, Rui Baião, Pepa. Depois disso, o Benfica perdeu espaço para o Sporting, que inaugurou a Academia de Alcochete. Mas o Benfica respondeu bem com a Academia do Seixal e agora voltou a estar por cima.

Muito obrigado pela entrevista, Catalunha.

O prazer foi meu.

in jornal i, Dez 2011

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