Fernando Santos. ‘Que jogador, o Cubillas, deu-me a volta à cabeça e aos rins’
A voz de Fernando Santos é um caso sério ao telefone. Seriedade, acima de tudo. E directo ao assunto. O português seleccionador da Grécia não nos deixa muito à vontade, ficamos sem espaço de manobra, e é ele que pergunta qual é o assunto. É o passado, queremos entrevistá-lo sobre o seu passado de jogador. O seu tom mantém-se inalterado, parece-nos até desconfiado. À primeira resposta, mais do mesmo. À segunda, já se sente outra vibração, mais relaxada. A partir da terceira, é descontracção pura. Eis Fernando Santos, o primeiro treinador português a entrar em acção no Euro-2012, por ocasião do Polónia-Grécia de hoje, um dia antes de Paulo Bento.
Boa tarde, Fernando Santos.
Boa tarde.
Daqui é Rui Miguel Tovar, do jornal i.
Sim, quer falar de quê?
Do seu passado como jogador.
Ligue-me daqui a dez minutos, se faz favor. Estou aqui a meio de uma operação. [Dez minutos depois.]
Daqui é Rui Miguel Tovar, do jornal i.
Dê-me mais dez minutos, está bem? [Só por causa das coisas, damos 18.]
Daqui é Rui Miguel Tovar, do jornal i.
Ah, agora sim. Diga lá.
Na sua ficha do site foradejogo.net há um desfasamento entre o Operário e o Estoril. Jogou onde?
No Benfica, juniores e reservas.
E quem jogava lá?
Assim que tenha feito carreira na 1.ª divisão, só o Amaral. Guarda-redes do Marítimo, FC Porto, Vitória FC, Penafiel. Foi internacional português e tudo. Pelo Vitória FC, se não me engano.
E o Fernando Santos, por onde andou?
Eu, o Amaral e o resto do plantel fomos campeões de Lisboa, mas depois o salto para os seniores… Não havia espaço para mim. Excesso de defesas-centrais, com Humberto Coelho, Messias, Barros, Rui Rodrigues.
Como surge então a ida para o Estoril?
Era treinado no Benfica por Jimmy Hagan. Quando saiu do Benfica, levou-me com ele para o Estoril.
Estamos em que ano?
Dezembro 1973. Juntos fomos campeões da 3.a divisão, série D [um ponto de avanço sobre o Juventude de Évora].
E em 1974/75?
Outra vez campeões. Primeiro da 2.ª divisão, zona sul [seis pontos de vantagem sobre o Barreirense], depois da 2.ª divisão, numa final com o Braga, campeão da zona norte. Na altura só havia duas zonas. Ganhámos 1-0 em Coimbra, após prolongamento.
De repente, o Fernando Santos a jogar na 1.ª divisão pelo Estoril.
E eu a estudar.
Como?
Estudava Engenharia no Instituto Superior Técnico. Já estava no segundo ano do curso quando o Hagan me falou sobre a aventura do Estoril. Acabei por aceitar porque a equipa não era toda profissional e isso era óptimo para mim.
Então?
Na 3.a e 2.a divisões, podia estudar de manhã e treinar à noite. Na 1.ª divisão, essa vida não era assim tão fácil. Cheguei a querer ir embora do Estoril e até abandonar o futebol para me concentrar nos estudos e na profissão de engenheiro, mas o presidente insistiu tanto que fiquei.
E jogou na 1.a divisão?
Sim, sim. Fui ganhando o meu espaço a pouco e pouco.
Como central?
Com o Hagan nunca joguei a central, sempre a médio. Com Medeiros e José Torres joguei todos os lugares menos a guarda-redes. Curiosamente, joguei sempre a guarda-redes até aos 15 anos. Depois disso é que avancei no campo. Eu até era bom jogador. Rápido, com técnica. Mas era preguiçoso.
Preguiçoso com o Hagan?
[Risos.] Com ele, alto lá. Treinava ali no duro. Ele não admitia cá conversa fiada. Aquele homem… Duro? Diria antes inflexível. Às vezes dizia-lhe “Ó mister, não é melhor jogar assim, assim, com este e este?” e ele “Não, eu escolhi estes 11 e são estes 11 que vão jogar”. Com ele era assim. Mas era um homem extremamente profissional e um ser humano fantástico. Olhe lá esta história.
Diga.
No pós-25 de Abril, as contas do presidente do Estoril ficaram congeladas e não havia com que pagar os salários aos jogadores. Um belo dia, o Hagan apareceu lá com uma mala, entrou no balneário, reuniu os jogadores e foi-nos perguntando à vez: “Tu, quanto é que te devem?” Dizia-se um número, ele abria a mala, tirava dinheiro e entregava em mão. Isto é o Jimmy Hagan. Sem esquecer os três títulos consecutivos de campeão pelo Benfica. Disso nem se fala. Provou toda a sua competência.
E aqueles treinos de subir e descer as escadas das bancadas da Luz?
Jimmy Hagan [risos abafados]
Como o estádio do Estoril era mais pequeno, os treinos eram menos exigentes?
Qual quê! Subíamos e descíamos mais vezes. Com o Hagan não havia volta a dar. Isso é que era bom.
E, com ele, sempre a médio.
Às vezes punha-me a extremo porque subia e cruzava bem. Também era o homem que marcava este ou aquele. E marquei tantos.
Diga um ou dois.
Keita [Sporting], Cubillas [FC Porto], João Alves [Benfica], pfff, isso agora estar a enumerá-los ia durar a tarde toda.
E qual foi o mais difícil de marcar?
Cubil… Não, o Cubillas não cheguei a marcar. Simplesmente não o consegui acompanhar. Que jogador. Esse peruano do FC Porto dava-me a volta à cabeça, aos rins.
Por falar em marcar, quantos golos tem?
Isso agora…
Vejo aqui que são dois.
[Resposta pronta.] Ah, está a falar de golos só na 1.ª divisão, sem Taça de Portugal nem escalões secundários?
Sim, só na 1.ª.
São dois, sim. Em jornadas seguidas, parece-me. E ambos de penálti. Um em casa com o Beira-Mar. Ganhámos 2-1 e o meu é o 2-0. O outro em Viseu, com o Académico. Estava 2-0, bis do Marinho. Penálti para nós e o Marinho recusa o hat-trick. Deixa o penálti para mim. Lá fui eu, 3-0.
Isso foi na época quê?
1978/79.
Pois, no ano seguinte transferiu-se para o Marítimo. Porquê?
Foi uma opção profissional. Tinha de ir à procura de melhores condições financeiras. Na altura pensava que ia fazer uma carreira no Marítimo. No ano seguinte decidi voltar.
Para o Estoril?
Recebi ofertas de Belenenses e Vitória SC, mas preferi o regresso ao Estoril. Até porque aí impus as condições e eles aceitaram-nas. Queria um emprego e o Estoril arranjou-me trabalho no Hotel Palácio. Lembro-me perfeitamente do meu primeiro dia, 5 de Janeiro de 1981. Ainda hoje trabalho com licença sem vencimento.
E o futebol?
Primeiro engenheiro, depois jogador. Treinava sozinho depois das 18, num horário diferente do dos outros. Outros colegas meus, como o Ruas [guarda-redes] e o Quim [médio], empregados bancários, também trabalhavam fora de horas.
Mais uma vez, campeão da 2.ª divisão.
Em 1980-81. E mais uma vez à frente do Juventude de Évora [quatro pontos].Tínha[1]mos uma equipa de luxo, com Manuel Abrantes, Franque, Manaca, Teixeirinha, Paris, Pedro Xavier, Diamantino, José Abrantes.
E mais uns quantos jogos na 1.ª divisão?
Mas aí num ritmo diferente porque era jogador-trabalhador.
E depois jogador-trabalhador-treinador?
Ahahah, isso também. Era adjunto do Fidalgo, que é meu afilhado de casamento. Ele pediu-me ajuda e disse-lhe “tu sabes quais são as minhas condições”. Aparecia lá duas vezes por semana.
E o contrato era de jogador-treinador?
Nãããã, só de jogador. Às vezes acontecia eu querer entrar para jogar e ele [Fidalgo] dizia-me que não era a melhor altura, ainda não [gargalhadas tímidas].
Última pergunta: e a selecção nacional?
Estive quase, quase, uma vez nos sub-20. Era um Portugal-Bélgica e o seleccionador convocou a dupla de centrais do Benfica, eu e o Maia da Silva. Mas o treinador Ângelo [bicampeão europeu pelo Benfica em 1961 e 1962] desviou-me para um Torneio Internacional em Cannes, com Juventus, Anderlecht e Cannes.
E não havia maneira de dar a volta ao Ângelo?
Nããã, para quê? Fiz dupla de centrais com o Eurico, joguei com Bastos Lopes, Shéu, Rui Lopes. Não há que queixar. Não fui internacional mas joguei pelo Benfica lá fora. Agora que falo disso até me lembro de outro torneio importante, era o Torneio Internacional do Benfica. Uma vez ganhámos 3-0 ao Ajax na final. Era uma prova com oito equipas. Nesse ano estavam lá quatro equipas (Estrela Vermelha, Vitória de Setúbal, Ajax e Benfica) e quatro selecções (mas só me lembro do Brasil e da Argentina do Tarantini e Kempes, mais tarde campeões mundiais, em 1978). Ganhámos, foi um orgulho.
Obrigado, Fernando Santos. Boa sorte no Europeu.
Abraço
In Jornal i, Julho 2012