Great Scott #388: Quem é a primeira fiscal-de-linha num jogo de futebol masculino em Portugal?
Margarida Maria
Corre o ano 1978, mais precisamente o dia 5 Novembro. É um domingo como qualquer outro. Ou não. O FC Porto isola-se na liderança da 1.ª divisão por conta do 0:0 vs Boavista nas Antas e do 1:0 do Coentro Faria (Barreirense) vs Sporting.
No Porto, naqueles jogos de rebimbomalho e vitóvento da 3.ª divisão distrital entre São Pedro Cova e Padroense, uma novidade nos campos portugueses com a inédita presença de uma mulher no trio de arbitragem. Chama-se Margarida Maria de Abreu Carvalho, é uma estudante da secundária de Valongo com 17 anos de idade.
A reportagem d’A Bola, através da pena de Alfredo Barbosa, é qualquer coisa. ‘O simples facto já é, por si só, uma machadada no monopólio arbitral machista. Melhor foi depois quando se viu que a miúda, cabelos loiros ao vento, carnes bem nutridas, transpirando saúde, determinação, à vontade e confiança por todos os poros dava conta do recado, não fazia ondas, não metia água, não provocava broncas nem admitia bocas.
Havia mulheres a ver.
— Vim cá de propósito, nunca tinha vindo ao futebol – dizia-me uma senhora baixinha, gordinha, de cabelos grisalhos, que procurava ver para dentro do campo por cima do ombro do macho que se postava à sua frente, impávido e sereno.
Depois, um espectador, que estava mesmo com vontade de meter a colherada, observava.
— Isto até pode ser bom para o futebol. Pode passar a haver mais disciplina, mais educação. Nestes jogos, há sempre umas más criações. Chamam todos os nomes aos árbitros e há chatices, há murros e pedradas. Pode ser que perante uma mulher as coisas não sejam assim. Pode ser que haja mais decoro.
Um espectador seco de carnes, garganta causticada pelo bagaço, garrafa de cerveja na mão, dentes podres do tabaco, gritava que Margarida estava boa era para lavar a loiça, mas logo se ergueu, dura e ameaçadora, a voz de uma mulher:
— Vá você, deixe lá estar a rapariguinha.
No final do jogo, o vice-presidente do São Pedro da Cova deitava contas à receita e afirmava-nos:
— Tivemos uma boa casa, para aí umas três ou quatro mil pessoas. Veio cá muita gente que normalmente não vai ao futebol, principalmente senhoras. A receita deve andar pelos 14 contos. Muito boa.
Vários jogadores dirigiram-se a Margarida no final do jogo e deram-lhe os parabéns pelo trabalho, além de lhe injectar palavras de encorajamento. Até o treinador do Padroense, derrotado por 4:2, dizia-me:
— É um campo difícil, por norma, mas desta vez o público comportou-se com extraordinária correcção, assim como os jogadores. Ela esteve bem, compenetrada, e tirou foras-de-jogo difíceis. Não teve medo do público. Se todas as mulheres-árbitro tiverem o saber desta, apoio a sua entrada no futebol dos homens. Até porque a simples presença de uma mulher pode, como aqui aconteceu, tornar o público mais educado e fazer com que mais mulheres vão ao futebol.
Margarida estava radiante com as manifestações e confessava-nos com uns olhos castanhos redondos do alto do seu metro e sessenta e três
— Estou satisfeita com o meu trabalho.
— Teve problemas com os jogadores?
— Não, todos se comportaram muito bem. Não recebi piropos de ninguém.
— Pareceu-me que lhe atiraram, em determinada altura, com qualquer coisa…
— Um sujeitinho qualquer atirou-me com a cabeça de uma boneca. Não teve importância, estou preparado para tudo.
— Acha que poderia ter dirigido este jogo?
— Porque não? Se as mulheres-árbitro forem rijas, podem dirigir qualquer jogo de homens.
— Como é que foi esse gosto pela arbitragem?
— O meu pai [José Soares Carvalho] é árbitro e tinha a mania de vestir as roupas dele. Um dia, cheguei à beira dele e disse-lhe ‘vou ser árbitro, já me inscrevi num curso’.
— E a sua mãe?
— Diz que também ia para árbitro se tivesse idade.
— Lá na escola as suas colegas…
— Acarinham-me muito e está a haver interesse em também irem para árbitro.
— E o seu namorado?
— Não vê inconveniente nenhum. Ele joga futebol no Louro, uma equipa de Famalicão e foi através de umas entrevistas que eu dei que chegou até mim, que me conheceu.
— Há mais alguma mulher no curso?
— Havia, sim, a Maria Luísa [dos Anjos Mendes], da Maia.
— E porque é que não veio?
— Parece que tem vergonha.