Bela Guttmann. ‘Talvez não tivesse vindo para o Benfica se o Estoril não ficasse tão perto’
Retalhos de entrevistas de Guttmann à imprensa nacional nos seus anos em Portugal.
Quais os termos exactos da sua famosa maldição?
Nem daqui a cem anos um clube português volta a ganhar duas vezes seguidas a Taça dos Campeões.
O que sentiu quando foi campeão pelo FC Porto?
Quando acabou o jogo em Torres Vedras, apalpei-me e não sabia se estava vivo ou morto. Cada segundo que demorou a acabar o jogo na Luz foi, para mim, como se tivesse 24 horas. Quando ouvi que o Porto era campeão é que tive a certeza de que estava vivo.
Porque trocou o Porto por Lisboa?
O clima de Lisboa é mais ameno e esse acabou por ser o argumento decisivo.
E o dinheiro?
Por mais estranho que pareça, eu talvez não tivesse vindo para o Benfica se o Estoril não ficasse tão perto. Só 20 km, tão bom.
Foi difícil ser treinador do Benfica?
Contra o Benfica, todos valem, ou fazem por valer, o dobro daquilo que efectivamente valem. É uma guerra santa.
A mística do Benfica é apenas um mito?
Só quem está lá dentro é que pode saber o que é mística. Já tinha ouvido falar, mas encolhia os ombros e até pensava que não passasse de uma simples palavra. Agora que a conheço, senti e vivi-a, afirmo-lhe que ela existe e nenhum clube do mundo a possui como o Benfica.
Exagera-se na mística sobre o Benfica?
Veja a massa associativa. Chove? Está frio? Faz calor? Nem que o jogo seja no fim do mundo, entre as neves da serra ou no meio das chamas do inferno, por terra, por mar ou pelo ar, os adeptos do Benfica vão atrás da equipa.
Qual é o seu conceito de equipa?
Cada esquema depende dos jogadores. Assim como um alfaiate não faz o mesmo fato para um corcunda ou um homem normal, um treinador de futebol não pode dar a todas as equipas que treina o mesmo figurino de jogo
Em que é que acredita mais no futebol?
Acredito em mim e acredito, ainda mais, no brio dos meus rapazes. Mas acreditar é uma coisa e confiar é outra. Por isso, prefiro sempre dizer que ganhámos do que dizer vamos ganhar.
É impossível fazer omeletas sem ovos?
Numa equipa, a classe não chega. Há necessidade também de espírito de luta. Não pode haver boas equipas sem espírito de luta.
Qual a sua fórmula para atacar?
Passe curto nas imediações da grande área contrária para aumentar a precisão; passe longo, quando se está longe da baliza para ganhar distância.
Considera-se um treinador de ataque?
Sempre me interessou mais o ataque do que a defesa. Não me desgosta nada que o adversário marque três ou quatro desde que marquemos quatro ou cinco. Primeiro, marcar golos. Depois, tentar não os sofrer. Eis a minha filosofia.
O que lhe diz as tácticas defensivas?
Como é que o futebol pode ser um espectáculo maravilhoso se lhe faltarem golos? Só tolero que se defenda o resultado se este for favorável e pela diferença mínima nos últimos 10/15 minutos.
Como se faz um bom jogador?
Tem de possuir 50% de bom executante e 50% de condição física. São atributos que não podem deixar de coexistir, sob pena de ambos deixarem de ter valor.
Sabe que tem fama de bruxo, de adivinhar as coisas?
Sou técnico de futebol, não sou técnico de prognósticos. Se fosse técnicos de prognósticos, não precisava de ser técnico de futebol.
Como chega ao onze de uma equipa?
Depende de factores importantes como o campo, o estado do tempo e o nariz. O nariz é muito importante, sabe? Se alguém se constipa e não respirar bem, não joga.
Quem é a vedeta, o treinador ou os jogadores?
Sou um técnico que não se aproveita dos jogadores. Quando perdemos, perco eu. Quando ganhamos, ganham eles. É muito mais lindo assim.
A sorte e o azar fazem parte do futebol?
Sem sorte não se conseguem bons resultados no futebol. Só com sorte nada se consegue. Essa sorte de que tanto se fala faz parte do futebol, é dele, pertence-lhe.
Como se consegue a sorte?
É preciso saber lutar pela sorte. Quando se está em dia não, luta-se pela sorte. Quando se está em dia sim, basta aproveitá-la. Compreende, senhor? Nada tem de complicado.
É um treinador sortudo?
Quando cheguei a Portugal, nos primeiros 37 jogos à frente de FC Porto e Benfica, apenas perdi uma vez. Isto é sorte? Se é, devo ser o homem mais afortunado do mundo.
Muda de ideias cada vez que perde?
Sou como os comerciantes: tenho cá a minha tabela e só deito balanço à vida no fim de cada ano. O prejuízo de um dia não me impele a vender ao desbarato no dia seguinte.
Como trata os seus jogadores?
Os jogadores são meus discípulos e meus filhos.
E trata-os bem?
Muito raros aqueles que tenho razão de queixa. E olhe que sou um pai muito duro, o mais duro e exigente do mundo.
Dá algum conselho em particular aos seus jogadores?
Putanas, nunca.
Lê jornais?
A opinião da crítica, quando séria e construtiva, interessa-me muito.
É adepto da rigidez táctica?
Creio na necessidade das tácticas.
É fácil transmitir a táctica e a estratégia aos jogadores?
Escreveram-se tratados sobre estratégia e táctica. Mas o jogador não é um estudante universitário, é sobretudo um prático. E só passa a acreditar nesta estratégia ou naquela táctica se ela se lhe demonstra em campo.
Há fórmulas simples no futebol?
O ‘passa, repassa e chuta’ é indispensável para chegar ao golo.
Só isso?
Marca e desmarca. Se a bola não é nossa, marca; se a bola é nossa, desmarca. Este é o princípio fundamental.
A final com o Real Madrid foi muito difícil?
Se eu treinasse o Real Madrid, creio que teria derrotado o Benfica, principalmente se tivesse desfrutado de uma vantagem de 2:0. O Benfica, com dois socos em cheio, vacilou. Se tivesse apanhado um terceiro murro, tinha caído.