Great Scott #574: Único jogador a pedir ao árbitro para anular um golo da sua selecção em pleno Mundial?
Igor Netto
Jesus Correia é um jogador fora de série. Tanto no futebol, como um dos cinco violinos no Sporting, tanto no hóquei em patins, onde se sagra campeão mundial por seis vezes. Há mais exemplos internacionais desta multidisciplinaridade, como o soviético Igor Netto.
Capitão da URSS campeã olímpica 1956 e europeia 1960, Igor é um hoquista de primeira água. Joga no Spartak Moscovo e faz 29 assistências em 22 jogos na época de estreia, com tão-só 17 anos de idade. Um belo dia, o treinador de futebol Abram Dagulov pede encarecidamente ao treinador de hóquei Aleksandr Igumnov que deixe de apostar em Netto porque aflige-lhe ver, jogo sim, jogo sim, Netto a coxear para o balneário tal a brutalidade do desporto, espécie de vale-tudo com conivência dos árbitros e delírio da massa associativa.
Palavra puxa palavra, Dagulov ganha o braço-de-ferro e Netto faz-se à vida como futebolista. É o número 6 por excelência, faz tudo bem. Tudo, menos passes longos. Netto é apologista da bola no pé e tabelinhas constantes até chegar ao golo. Sempre de cabeça levantada. A sua eficácia é elevada, a selecção da URSS ganha prestígio. O título olímpico em Melbourne (1956) e o título europeu em Paris (1960) comprovam-nos em absoluto.
Como em tudo na vida, há um antes e um depois. Antes da medalha de ouro na Austrália, a URSS vai aos Jogos Olímpicos 1952, em Helsínquia. É o baptismo internacional de Netto. Na primeira ronda, a Bulgária só é ultrapassada após prolongamento (2:1).
Na eliminatória seguinte, o sorteio dá Jugoslávia. É um jogo de futebol com muita política à mistura. Sejamos sérios, vá, é mais política que futebol, é Tito vs Estaline. Ao intervalo, 3:0 para a Jugoslávia. Aos 75 minutos, 5:1. Aos 90’, espante-se, 5:5. Bobrov, um craque número 9, marca três. Petrov é o autor do empate ao cair do pano. No prolongamento, nada de novo.
É preciso um desempate, dois dias depois, a 22 Julho. A URSS marca primeiro, pelo inevitável Bobrov, e a Jugoslávia dá a volta ainda antes do intervalo. Na segunda parte, 3:1 e fim de papo. Estaline explode de raiva e acaba com o CDNA Moscovo (futuro CSKA), a espinha dorsal dessa selecção.
Sem a melhor equipa na 1.ª divisão soviética, o Spartak Moscovo assume-se como número um e começa a ganhar mais protagonismo que nunca. Sem os artistas do CDNA na selecção, Netto é feito capitão de capitão de equipa e assim o será até ao final da carreira, em 1965.
No seu percurso, além dos dois Jogos Olímpicos e do Euro-60, Netto entra no Mundial-62 e assume um papel curioso no terceiro jogo da fase de grupos, vs Uruguai. A meio da segunda parte, com 1:1 no marcador, um resultado favorável à URSS rumo aos ¼ final, Cislenko faz o 2:1. É a alegria total.
O guarda-redes Sosa protesta ruidosamente e Netto vai saber o porquê daquela algaraviada. Diz o uruguaio que a bola passa por fora, por entre as furadas malhas laterais. Netto pergunta a Cislenko e o avançado confirma. Visto os dois lados, Netto dirige-se ao árbitro italiano Jonni e diz de sua justiça. O árbitro ouve-o e muda a decisão. Continua 1:1. No último minuto, Ivanov marca o 2:1 regular e elimina o Uruguai.
Netto diria na sua autobiografia. ‘Era incapaz de ganhar um jogo assim. Quando soube que a bola tinha entrado por fora, tinha de falar com o árbitro. Assim foi e, claro, fiquei aliviado com o 2:1 de Ivanov no fim.’ Conhecido como ganso, pelo formato da cara e também pela forma de jogar de cabeça levantada, o introvertido Netto passa a reforma a apostar em hipódromos.
A sua mulher Olga Yakovleva, actriz de cinema e teatro, não vai à bola com essa moda e, certa vez, telefona para o hipódromo a dar um recado importante. ‘Foi a única vez que o Igor voltou para casa num piscar de olhos. Disse-lhe que o nosso apartamento estava a arder. Ele ficou tão aliviado por me ver bem que nem ligou à mentira.’