#38 Holanda 1988
Buenos Aires, 25 Junho 1978. O Monumental está para lá de lotado. A Argentina procura a consagração em casa e, já agora, a vingança de duas pesadas derrotas com a Holanda desde 1974: quatro-zero no Mundial da RFA e quatro-um num particular em Amesterdão.
Talvez (só talveeeeez) por isso os argentinos tenham entrado em campo cinco minutos mais tarde que o previsto. Nesse período, todos os adeptos assobiam os holandeses que se passeiam no relvado a fazer alongamentos como se nada fosse. Se isso já é grave, o pior vem depois.
Na moeda ao ar, o capitão argentino Daniel Passarella queixa-se ao árbitro italiano Sergio Gonella do gesso na mão esquerda de René van de Kerkhof. Palavra puxa palavra, o holandês é mesmo obrigado a abdicar do gesso pela primeira vez em todo o Mundial e com isto perdem-se mais oito minutos.
Com a bola a rolar, a primeira grande oportunidade pertence à Holanda, aos quatro minutos, com Rensenbrink a cabecear ligeiramente por cima da trave de Fillol após livre de Haan. A Holanda silencia novamente o Monumental com um pontapé de Rep que Fillol repele com dificuldade para cima mas o marcador funcionaria para a Argentina aos 37’, num lance entre Gallego, Ardiles e Kempes, com finalização do goleador por debaixo do corpo do guarda-redes Jongbloed.
Ao intervalo, o 1:0 não espelha a realidade. Na segunda parte, a Holanda continua mais ofensiva com Fillol a mostrar serviço. Às tantas, Happel substitui Nanninga por Rep e seria ele o primeiro suplente a marcar em finais, aos 82’, num lance em que curiosamente até se inicia num lançamento lateral de Tarantini para Houseman.
Na tentativa de devolver a bola, Rensenbrink intromete-se e segue-se uma troca vertical de passes entre Haan e René van de Kerkhof pelo lado direito. O cruzamento apanha Nanninga solto na grande área para um belo cabeceamento, 1-1.
Prolongamento? Nem um nem outro querem. A Argentina ataca aos 89’ e Houseman é derrubado dentro da área. Seria penálti mas o árbitro nada apita. Acto contínuo, um dos mais famosos lances do jogo: lançamento longo para Rensenbrink e toque subtil à saída de Fillol… ao poste. Destino cruel: se fosse golo, Rensenbrink seria melhor marcador (faria seis golos, mais um que o peruano Cubillas e o argentino Kempes) e até melhor jogador do Mundial.
Prolongamento? Agora sim. Joga-se mais com os nervos à flor da pele e as faltas sucedem-se umas atrás das outras. Até que Kempes desempata de novo, aos 105’. Passarella marca livre na sua área, por fora-de-jogo holandês, Bertoni recolhe a bola e passa-a ao avançado, que se livra de dois carrinhos holandeses e ganha o ressalto a Jongbloed antes de empurrar para a rede, 2-1.
Já sem pernas, a Holanda rende-se definitivamente aos 115’, por Bertoni, na sequência de uma falta dura sobre Luque, que sai do campo com o nariz a sangrar. A Argentina levanta a taça pela primeira vez (só voltaria a erguê-la em 1986) sem a Holanda no relvado, em protesto pelo regime opressivo da Junta Miliar do General Videla na Argentina. À noite, mais uma alfinetada da Holanda.
Conta aí João Havelange. “Era a minha primeira Copa na presidência e a FIFA fazia um jantar onde entregava prémios aos quatro semi-finalistas. Houve o banquete e, às 21h, cheguei com a minha mulher. O presidente da Argentina já estava lá. Às 22h, nada da Holanda. Às 22h30, nada da Holanda. Estavam lá Brasil, Itália e Argentina. A Holanda só chegou às 23h, e em fato de treino. Nunca mais houve jantar na minha administração. Quem ganhasse a final, subia à tribuna, eu dava-lhes as medalhas e assunto encerrado’.
Passa-se um ano. Dois. Quatro. Oito. Estamos em 1986, na ressaca do Mundial do México. A Holanda é treinada por Rinus Michels desde Abril e está virada para o apuramento rumo ao Euro-88, na RFA, onde o mesmo Michels perdera a final do Mundial-74, em Munique, com os anfitriões. A ideia de vingança ainda está muuuuuito longe. Para chegar à RFA, a Holanda tem de dobrar uma espécie de Cabo das Tormentas.
O plantel é talentoso e jovem, com todas as vicissitudes e os problemas agregados. Só há um veterano naquela selecção, internacional desde os anos 70: chama-se Mühren (1978). Todos os outros fazem-se à selecção a partir de 1980, como Van Breukelen. Em 1981 é a vez de Rijkaard e Gullit. Em 1982, Vanenburg e Wouters. Em 1983, os irmãos Koeman, Van Tiggelen e Van Basten. Falta um. Pois é, Van Aerle é o único homem lançado por Michels durante a qualificação do Euro-88.
O arranque é assim-assim, com duas vitórias e dois empates. Van Basten é o herói vs. Hungria e vs. Grécia. Na segunda volta do grupo 5, a Holanda dá um golpe de autoridade por obra e graça de Gullit, autor de golos importantíssimos vs. Hungria e Polónia. Quando se chega à penúltima jornada, a Holanda está à frente, acompanhada de perto pela Grécia.
A recepção ao Chipre é um hino ao descaramento, porque a Holanda dá oito-secos. Bosman, só ele, marca cinco – Van Basten está lesionado há mais de seis meses e nem conta para o totobola. O problema é que o guarda-redes cipriota Charitou é agredido por objectos atirados da bancada. O Chipre faz queixa à UEFA e, em princípio, a Holanda vai sair a perder. Tanto no presente (0:3) como no futuro (um jogo à porta fechada).
Só que não, a UEFA fecha os olhos – e, atenção, a UEFA declarara derrota aos sub21 da Holanda por um problema idêntico no ano anterior. A Holanda passa então a qualificada num abrir e fechar de olhos. A Grécia, agastada com os jogos de poder nos bastidores da UEFA, apresenta os sub23 em jeito de protesto para o derradeiro jogo do grupo, e bem longe da capital Atenas (o local eleito é Rhodes), precisamente vs. Holanda.
Na fase final propriamente dita, a Holanda arranca mal. Diz o resultado de 1:0, golo formidável de Rats em lance de contra-ataque. Já a exibição é elogiada por todos, até porque Dasaev é o melhor em campo com duas defesas da sua marca. Para o jogo seguinte, o do tudo ou nada, vs. Inglaterra, o seleccionador Rinus faz entrar Van Basten de início. O rapaz voltara da tal lesão e ainda suscita algumas dúvidas, rapidamente dissipadas com três golos. O 3:1 é um resultado enganador, porque a Inglaterra encostara a Holanda à sua área e atirara duas bolas ao poste ainda com 0:0.
Adiante, a Holanda agora tem de ganhar à surpreendente Irlanda de Jack Charlton para chegar à ½ final. O jogo é morno, a Irlanda dá boa conta do recado e falha um golo pelo avançado Aldridge à boca da baliza. Perto do fim, um remate enviesado de Koeman é desviado de cabeça pelo suplente Kieft e um mar laranja entra-nos pelos olhos dentro. A Holanda vai à ½ final e joga o futuro vs. RFA, em Hamburgo, onde o árbitro romeno Igna assinala dois penáltis. Um é indiscutível, de Rijkaard sobre Klinsmann à entrada da área (marca-o Matthäus e Van Breukelen ainda toca na bola). O outro é inexistente, de Kohler sobre Van Basten (marca-o Ronald Koeman e Immel é completamente enganado).
Com 1:1 à porta do minuto 90, todos pensam no inevitável prolongamento. Todos, menos Wouters e Van Basten. O médio faz um passe a rasgar, o goleador atira-se com tudo e finta a oposição de Kohler com um remate cruzado e rasteiro. Que sonho, Michels vinga a derrota de 1974, Beckenbauer, sempre cavalheiro, dá os parabéns. ‘Não é que tenha merecido pelo futebol, mas a Holanda chega à final por capacidade de superação. Felicidades para a final, seja qual for o adversário’.
No dia seguinte, em Estugarda, a URSS joga o futebol do ano 2000 e passa a ferro a Itália. Só há um ponto negativo no 2:0, o amarelo a Kuznetsov. O central está assim suspenso da final e a ausência é mais grave do que se pensa, porque Lobanovsky treina Aleinikov para marcar Van Basten. É um erro estratégico, embora a URSS acumule perdidas flagrantes através de Belanov, autor de uma bola ao poste e ainda de um penálti falhado. Ou melhor, defendido por Van Breukelen.
Por essa altura, a Holanda já ganha 2:0. Marcam Gullit, de cabeça, e Van Basten, num extraordinário vólei de ângulo apertado e sem deixar cair a bola. Os dois amigos do Milan seriam eleitos os melhores jogadores do Europeu, com 1250 votos para o goleador e 578 para o capitão. O terceiro e último do pódio é Rijkaard, então no Saragoça e, claro, a caminho do Milan, com 498.
Na zona mista, o guarda-redes aparece no seu estilo habitual, animado e fanfarrão. Pelo meio, o elogio a Jan Rekker. Quem? O treinador do VVV Venlo. O quê? Isso mesmo, Jan Rekker é o treinador do VVV Venlo e é um eterno estudioso dos penáltis. ‘Quero agradecer ao professor penálti, sem ele nada disto seria possível. Sabia que o Belanov ia atirar para aquele lado e àquela altura, tal como sabia como ia ser a bola do Veloso na final da Taça dos Campeões de há um mês.’
Qual Gullit, qual Van Basten, o rei do pagode é Jan Rekker. ‘Habituei-me a catalogar os marcadores de penáltis, graças ao meus vídeos em casa. Estava sempre a visualizar penáltis de toda a Europa, através dos resumos televisivos. Cada jogador tinha uma ficha, cada ficha tinha os penáltis em pormenor. Cheguei a ter dois-mil-jogadores.’ E essa lista, onde está? ‘Em 2004, recebi a notícia de que não podia mais treinar por um problema grave nas costas. Chateado, muito chateado, atirei as fichas para a lareira.’ Caraças, g’anda galo.
Adiante, Van Breukelen agradece eternamente a ajuda, a Holanda idem idem, Michels aspas aspas. Em que dia é isso? Fácil, 25 Junho. Exactos dez anos depois da derrota em 1978, a consagração em 1988.
(a negrito, os jogos fora)
Fase de qualificação
Hungria | 1:0 | Van Basten |
Polónia | 0:0 | |
Chipre | 2:0 | Gullit / Bosman |
Grécia | 1:1 | Van Basten |
Hungria | 2:0 | Gullit / Mühren |
Polónia | 2:0 | Gullit-2 |
Chipre | 4:0 | Bosman-3 / R. Koeman (p) |
Grécia | 3:0 | Gilhaus-2 / R. Koeman |
Fase final
URSS | 0:1 | |
Inglaterra | 3:1 | Van Basten-3 |
Irlanda | 1:0 | Kieft |
RFA | 2:1 | R. Koeman (p) / Van Basten |
URSS | 2:0 | Gullit / Van Basten |