Neno. “O Folha estava céptico, mas não dava para ignorar: ele era igualzinho ao Richard Gere”
É um tema recorrente, o signo aquário. Aqui para Portugal reúne uns quatro ilustres representantes do best: Artur Jorge (primeiro treinador português a sagrar-se campeão europeu), Eusébio (primeiro internacional português a ganhar a Bola de Ouro e também a Bota de Ouro), Mourinho (primeiro treinador português a ganhar a Liga dos Campeões por duas equipas, FC Porto e Inter) e Ronaldo (melhor marcador da selecção). Para fazer a conta certa de cinco, juntemos o elemento em falta. Adelino Augusto Graça Barbosa Barros. Ou melhor, Neno. Na nossa cabeça, uma série de jogos memoráveis como 6-3 em Alvalade, 4-4 em Leverkusen, 2-0 do César Brito nas Antas e 3-1 em Highbury. Quatro, falta um para fazer conta certa. É o 1-1 em Wembley. Só pode.
Neno, tudo bem?
Rui Miguel Tovar, tudo bem? [a resposta é audível, tal como o som por detrás]
Tudo bem, obrigado. Vamos a isso. Que jogo, este.
Wembley, quem nunca sonhou em estar lá a jogar? Fui um privilegiado, porque joguei no Maracanã e também em Wembley. Quer dizer, os dois estádios mais míticos do meu tempo. Ambos passavam pelo nosso imaginário e poucos tiveram a felicidade de jogar. O Maracanã era mais distante, todo um Oceano a separar-nos, e o Wembley estava mais perto, até do ponto de vista sentimental. [este barulho de fundo é qualquer coisa]
Então?
As finais da Taça de Inglaterra davam na RTP e, porra, o país parava todo. Nós consumíamos as finais como se não houvesse amanhã. Estamos a falar de um tempo em que a televisão dava poucos jogos em directo. Quando dava, era uma festa.
E este em Wembley?
Vi agora na RTP Memória, que é agora o meu canal, o canal da minha geração, ahahahahah. Foi um domingo ou um sábado, já não me lembro. À tarde, um amigo meu liga-me e diz-me que está a dar o Portugal-Inglaterra. Fui ver e achei muito curioso.
O quê?
Havia o estigma de que o Neno não saía aos cruzamentos. Bem, nesse jogo, os ingleses passavam o meio-campo e cortavam a bola lá para cima.
E o Neno?
Lá no meio, a fazer pela vida. Ahahahah. Agora a sério, fizemos um jogo maravilhoso. Pude ver e deliciar-me com a arte de alguns jogadores.
Nossos?
E até dos ingleses. O Les Ferdinand tinha uma estampa física impressionante.
E mais, mais?
Havia disciplina, responsabilidade e consciência. No Maracanã, no tal jogo que fiz também pela selecção, antes deste em Wembley, perdemos 4-0 e sofri dois golos contra. Foi num período em que nós estávamos de férias e eles competiam. Foi uma experiência gratificante, claro. Agora Wembley foi ma-ra-vi-lho-so porque jogámos de igual para igual e empatámos 1:1.
Neno, número 1.
Claro, ahahahahahahah.
Jogavas onde?
Benfica. No Maracanã, aquando da minha estreia pela selecção, era do Vitória.
Secretário, 2.
Lateral-direito do FC Porto. Muito certinho, não era de riscos, era mais de ficar e defendia bem a sua zona.
Jorge Costa, 3.
Estava a aparecer e dava-nos solidez, sobretudo a nível aéreo, porque interceptava muitas bolas altas. Apesar de jovem, já demonstrava uma calma fora do comum. Isto é, saía a jogar quando era para sair a jogar ou limpava a bola da sua área quando era para limpar.
Fernando Couto, 4.
O capitão. Já jogava no estrangeiro e estava perfeitamente enquadrado com a realidade de um futebol diferente, como o inglês. Combinava bem com o Jorge Costa. Tanto assim é que formaram uma dupla por muitos e bons anos, Mundial-2002 inclusive.
Dimas, 5.
Sabes que ele quase faz golo?
Nem ideia.
Há lá um lance muito bem feito em que se envolve no ataque e o golo não sai por acaso. Da linha defensiva, era o mais atrevido. Porque gostava de subir e porque tinha uma condição física invejável.
Ele agora aparece pouco, é retraído?
Ahahahahah. Nada, o Dimas é muito brincalhão. Percebo o que queres dizer e, de facto, o Dimas não falava muito na terlevisão ou na rádio ou para os jornais, mas é extrovertido. E o curioso desta equipa em Wembley é que há duas gerações. A minha, cuja excentricidade tem um limite. E a do Dimas e outros, mais à frente. Eles apanharam a Lei Bosman e viam o futebol de uma forma diferente, mais global.
Hélder, 10.
Dez, pois é. Ahahahahahahah. Jogou a trinco, porque o Oliveira sabia da voracidade dos ingleses em atacar. E, na verdade, ele foi o tampão dessa noite. Se alguém subisse no campo, ele fazia as costas. E sempre bem, porque o Hélder sempre foi seguro e sóbrio.
Figo, 7.
O craque daquela gente toda. Era comum dizermos ‘dá a bola que o Figo resolve’. E resolvia, porque era singular e excêntrico. Aliás, o Sporting sempre deu jogadores excêntricos, como Futre e Fernando Mendes numa primeira fase e, depois, Figo e Peixe. Foram jogadores bem aproveitados pela selecção e o Figo foi muuuuuuito bem aproveitado.
O Neno e o Figo têm uma história engraçada nos dérbis.
Verdade.
Sobretudo naquela época 1993-94, o Figo marca-lhe dois golos de cabeça.
Venceu-me, individualmente. Ganhei eu, colectivamente. O Benfica ganhou os dois jogos, 2:1 na Luz e 6:3 em Alvalade. Mas o Figo era isso mesmo, aparecia em todos os momentos, fossem derrotas ou vitórias. Foi o nosso expoente máximo durante muitos bons anos e nunca desapontou ninguém, com uma personalidade muito própria. Era um indivíduo muito tímido. No campo, qual timidez qual quê, ahahahah.
Paulo Sousa, 6.
Outro com uma personalidade muito própria. Resguardava-se até mais que o Figo na sua maneira de ser. Não era um gajo muito para a brincadeira, ele é que procurava as brincadeiras. Ou seja, tínhamos de saber brincar com ele.
E dentro de campo?
Um craque que sabia jogar à bola, um craque que aprendeu com tudo e todos. Soube ouvir e ver para depois executar. Costumava dar-se muito com o Rui Bento e o Paulo Madeira, seus companheiros na formação do Benfica. Montaram ali um trio eléctrico bem engraçado. Ahahahahah. [continua o som de fundo; irra, que será isto?]
Folha, 11.
O Richard Gere, ahahahahahahah. Eu tinha uma adoração pelo Folha, porque gostava muito de um actor que estava a aparecer que era o Richard Gere. Virei-me para o Folha na primeira vez que o apanhei à frente e disse-lhe ‘pareces o Richard’.
E ele?
‘Quem é esse gajo pá?’ Na altura, ainda não havia telemóveis nem nada. Então tive de arranjar uma fotografia do Richard Gere e mostrar-lhe.
Repito-me, e ele?
Sempre céptico, ahahahahah. Mas não dava para ignorar: o Folha era igualzinho ao Richard em jovem. No campo, era um daqueles jogadores com uma vontade extrema de dar tudo o que tinha. Nenhum treinador lhe dizia ‘tu tens de baixar e tal’. Não, não, o Folha fazia o corredor todo de uma ponta à outra, incansável. Um belíssimo extremo, ia à linha e cruzava sempre bem.
Sá Pinto, 9.
Só via a baliza, com a sua determinação e garra, que mais ninguém tinha. Era aquele ponta-de-lança nato que quer marcar sempre. Nesse sentido, um pouco egoísta. E um belíssimo jogador, daqueles batalhadores. Foi titular em Wem,bley para morder os calcanhares aos ingleses o tempo todo, ahahahahah.
JVP, 8.
Ohhhhhhhh, o menino de ouro. A nossa coqueluche. O João era um craque imaginativo e pensava mais rápido do que qualquer outro. Ele ainda não tinhas a bola no pé e sabia o que fazer com ela. No Benfica, todo o nosso jogo passava pelo senhor João Pinto. Se ele estivesse bem, era goleada pela certa. Se ele estivesse apagado, era renhido.
O maior craque do nosso campeonato nos anos 90.
Mesmo que o João não estivesse bem fisicamente, um treinador diria ‘porra, tenho de meter este gajo (…) ele até pode estar mal durante 80 minutos, mas resolve o jogo nos outros 10 com um, dois, três golos’. Sobressaía-se com facilidade. O hat-trick em Alvalade é um caso desses. Faz três golos na primeira parte com uma facilidade tremenda.
Oliveira, o seleccionador. Como era ele?
Deixava-nos jogar à bola e apelava à nossa criatividade. A sua intervenção era pontual. E decisiva.
O Eusébio ainda trabalhava na selecção?
Lembro-me de apanhar o Eusébio no Benfica.
E que tal?
Bom, óptimo. Ensinava-nos a manha dos avançados e tinha um remate que mais ninguém tinha. A colocação e a potência, digo eu. Ele dizia-nos ‘vou meter-te a bola ali em cima, entre a trave e o poste’ e obrigava-nos a ficar pregados ao relvado até ele dar o sinal do remate. No fundo no fundo, estava a treinar a nossa velocidade de reacção. Se nos lançássemos à bola antes, ele enganava-nos e metia a bola no outro ângulo. Mas, Rui, isso era mato para ele. O Eusébio metia a bola onde queria.
Belo exercício.
Se defendessemos a bola do Eusébio, já podíamos sentir toda a confiança para defender a bola outro de outro jogador qualquer. Ahahahahah. Outro treinador de guarda-redes que apanhei foi o Bento, que nos transmitiu mais a visão do guarda-redes, o posicionamento, como reagir à angústia de um erro e tudo isso.
Espectáculo, mil obrigados.
De nada, Rui [continua o som]
Desculpe lá, este som é o quê?
Sou eu a cofrrer na elítica.
Hein?
Isso mesmo Rui, temos de estar sempre no ponto. Ahahahahah.
Mas o Neno passou 40 minutos a falar na boa.
No ponto, ahahahahah.