Sá Pinto. “Só havia um sanitário no nosso balneário, ainda por cima sem tampa”
O bicho é chato e incomoda até dizer chega. O do trabalho, queremos dizer. À falta de convívio pessoal, reinventamo-nos com uma ideia de chegar a toda a gente através de um simples resumo televisivo. Só temos um pressuposto para avançar com o projecto, o da apresentação da equipa titular. Desaguamos na época 1993-94 e, de repente, sai-nos um Salgueiros-Benfica na Maia em 1994. O resumo é dos bons: apresentação das equipas, as jogadas mais perigosas e ainda uma espécie de flash-interview, ainda no relvado, já sem holofotes. É um mimo, claro está. O herói dessa tarde é Sá Pinto, autor do 1-0 a cinco minutos do fim, num remate em souplesse com o pé esquerdo, à entrada da pequena área, apertado por Schwarz e à saída de Neno.
Heyyyyyyy, bom dia, tudo bem?
É estranho, o dia [é o primeiro do plano de emergência]. Não se vê quase ninguém lá fora, isto parece tirado daqueles filmes apocalípticos que víamos.
Ya, podes crer.
Agora é a dura realidade, incrível. Isto é história a acontecer. Do lado mau. A ver se passa bem depressa.
Enquanto não passa, estou a ver o Salgueiros-Benfica de 1994.
Eischhhhh, grandes tempos. É o meu último ano no Salgueiros, depois vou para o Sporting. Aliás, esse jogo é em Abril e já tinha assinado pelo Sporting.
O golo é teu.
Um-zero na Maia. Com a derrota, o Benfica perde a liderança isolada. O Sporting ganha a quem? Boavista, acho [3-1 com o pontapé de bicicleta do Juskowiak]. E os dois ficam empatados na frente. É o ano do 6-3.
Lembras-te bem disso?
Se me lembro? Foram tempos inesquecíveis, gloriosos até. Como essa tarde, já viste bem esse Benfica? Mozer, Paneira, João Pinto, Isaías, Rui Costa, Schwarz, Kulkov, Iuran.
Pois, é forte.
Muito forte.
E o Salgueiros?
A alma, tínhamos muita alma. E jogávamos bem, para a frente e com toque de bola. Era um grupo de trabalho sensacional.
Posso começar a dizer-te o onze para falares desses heróis?
À vontade.
Isto ainda é do tempo de 1 a 11. Número 1, Madureira.
Bom amigo desde então e até hoje. Um dos mais experientes da equipa, dava-nos muita segurança. Era bastante comunicativo e um guarda-redes seguro, embora não fosse um prodígio de técnica ou a sair dos postes, à boa maneira dos portugueses. Colocava-se bem na baliza e fez uma carreira apreciável na 1.ª divisão.
Número 2, Renato.
Dois, a sério? Jogou a lateral?
Perguntas bem.
Já vemos o resto da defesa para saber isso. O Renato fez a formação comigo e acabámos por jogar juntos no Sporting. A gente chamava-o de sono, porque ele era sempre tranquilo, sempre na paz. Mesmo que fosse o último homem da defesa, ele fazia as coisas com uma calma extraordinária. Porque era muito bom tecnicamente, conseguia sair a jogar na boa. Mas, às vezes, irritava-nos. Porque, imagina lá, dois ou três gajos em cima dele e o Renato com aquele ar zen. Ahahahah. Que figura, estou a reviver agora esses momentos de aflição. Nós à espera de um chuto para a frente e ele a manter a bola como se estivesse à vontade.
Número 3, Pedro.
Peeedro, o nosso capitão e líder da defesa. Muito inteligente, posicionava-se bem e nunca se deixava ser apanhado em contrapé. Além disso, tinha grande mobilidade.
Número 4, Djoincevic.
Eischhhh, central de barba. Muito experiente e combativo, era exigente com os colegas, o que só demonstrava grande personalidade. Como o Vidal Pinheiro era pequeno e apanhávamos muitas equipas com futebol directo, o Djoincevic era crucial para nós pelo seu jogo de cabeça. Era forte, fortíssimo.
E lá em baixo?
Tambééééém.
Apanhaste muito dele nos treinos?
Levava sempre um apontamento, só aquele cheirinho a dar a entender que não podia fazer tudo o que quisesse. Ahahahahah. Outro pormenor engraçado: no final dos treinos, o Djoincevic gostava muito de ir tomar um café ali ao pé do estádio. Ele e os outros jugoslavos, como Milovac, Nikolic, Lalic. E eu ia com eles. Boas memórias, convívio a sério.
Numero 5, Pedrosa.
Grande lateral-esquerdo, talentoso e destemido. Ajudava muito o ataque e criava desequilíbrios. Rematava bem e, apesar do azar com as lesões, ainda fez uma grande carreira. Foi comigo para o Sporting nesse Verão e ainda chegámos a dividir um apartamento juntos nos primeiros tempos.
Onde?
Nas Laranjeiras.
Espectáculo. Milovac, número 6.
Grande amigo, sempre mantivemos a relação pós-Salgueiros e pós-futebol. Era um central com um remate fortíssimo. Era bom para marcar livres à entrada da área, porque dava-lhe bem na bola. Se não fosse golo, o guarda-redes defendia com dificuldades e aí havia sempre a oportunidade da recarga.
Abílio, 7.
Cerebral, tecnicamente muito evoluído, com qualidade absurda tanto no passe curto como no passe longo. Embora não fosse bom defensivamente, tinha uma excelente reacção à perda de bola e era, claramente, um virtuoso na bola parada. Aliás, é ele quem nos salva da descida de divisão em 1992, como autor daquele golo na Luz. Acabou 1-1, porque o Isaías faz o empate perto do fim, e quem desceu foi o Torreense. Dentro do balneário, uma grande companhia, sempre espirituoso. Como curiosidade, treinei o filho dele. Ahahahah.
Tulipa, 8.
Excelente jogador, fez comigo a formação no FC Porto e apanhei-o no futebol sénior do Salgueiros. Bom tecnicamente, era um médio ofensivo com capacidade de levar a bola, de combinar e do último passe.
Leão, 9.
Um médio mais defensivo, forte a roubar e a entregar, com capacidade de passe longo muito boa. Gostava de variar o jogo com diagonais longas e fazia-o como ninguém. Também gostava de ir à bola, porque um, gostava de duelos e dois, tinha empatia com a bola. Como se isso fosse pouco, jogava sempre simples, nunca inventava.
Bino, 11.
Podia jogar a 6 ou a 8. Fez comigo a formação no FC Porto, onde, curiosamente, até era avançado. Inteligente no posicionamento e na leitura de jogo, procurava jogar simples na preparação do ataque. Fez uma carreira muito interessante.
Omiti o 10 de propósito: Sá Pinto.
Ahahahahahah. Como já tinha assinado pelo Sporting, sabia da minha responsabilidade nesse jogo para o próprio Sporting. Até me lembro que o presidente Sousa Cintra ter dito que eu ia marcar. E marquei. Jogada do Joni pela esquerda e eu encostei. A verdade é que essa vitória do Salgueiros animou o campeonato. No fundo, o Salgueiros ofereceu ao Sporting a possibilidade de se sagrar campeão.
Treinador deste Salgueiros?
Mário Reis. Excelente treinador e excelente pessoa, com fantástica leitura de jogo. Sempre me deu bons conselhos e soube sempre ter paciência comigo, pela minha impetuosidade e irreverência. Fez o dois-em-um.
Qual?
Ajudou-me e compreendeu-me. Se o Filipovic, por quem estou eternamente grato, foi quem me lançou, o mister Mário Reis foi quem me consolidou como jogador de 1.ª divisão. Sempre teve olho para os jogadores. Ainda agora, já afastado do banco, é um homem do terreno, que anda aí a ver os talentos por esse país fora.
Espectáculo, mil obrigados por teres sido o primeiro participante neste tipo de entrevistas.
Caaalma, ò Rui, isto ainda não acabou.
Ai não?
Não, não, não. Esse Salgueiros tem muito mais histórias para contar.
Então?
Olha, a minha transferência para o Sporting foi de 220 mil contos. Acho que foi isso. Serviu para ajudar o Salgueiros em muita coisa.
Por exemplo?
A banheira de hidromassagem não tinha o regulador de temperatura. Metíamos 50 graus e quem se atrevesse a entrar logo no início ficava com as pernas queimadinhas, ahahahah. A solução era deixar aquilo a borbulhar um pouco e só depois entrar, ahahahah. O nosso ginásio, outro exemplo, era feito de dois aparelhos: uma bicicleta que andava em falso.
Em falso?
Dava uma pedalada e começava a ‘andar’ sozinha, ahahahah.
Ahahahah, e o outro aparelho?
Câmaras de ar de pneus com areia.
Whaaaaat?
Isso mesmo, não havia nada para trabalhar a zona do peito. Ao fundo, uma maca presas por cordas. Rui, não havia dinheiro para mais. Nem para arranjar novos aparelhos nem para arranjar os que já lá estavam.
E?
Éramos felizes, essa é a questão. Foram tempos fantásticos, porque fizemos muito com poucas condições. Qualificámo-nos para a UEFA em 1992-93 e ganhámos ao Benfica em 1993-94. Havia de tudo. No departamento médico, o falecido Rui fazia milagres. Era muito engraçado, o Rui. Tal como o roupeiro Manuel. Uma jóia de pessoa e trabalhava com o que tinha.
Então?
Dava-nos sempre meias rotas, calções meio rasgados, equipamentos defeituosos. Os impermeáveis só nos chegaram às mãos perto do final da época. Antes, só havia um sweat shirt ou outra. E o nosso tratador de relvado?
Quem era?
O Lourenço. Dizíamos-lhe sempre a mesma coisa: não te esqueças de marcar o campo antes de almoço, porque as linhas já não são as mesmas depois de almoço. Era assim, Rui, poucas condições mas uma alma imensa. Digo isto porque vivíamos aquilo intensamente. Todos nós.
Presidente e tudo?
A união era total, temos de falar dos presidentes António Linhares e Carlos Abreu. Temos de falar dos patrocinadores. Nessa época, era a Ferbar. Temos de falar da ajuda de todas as pessoas dedicadas ao clube, é incrível um movimento destes na 1.ª divisão. É que não esqueçamos: era um clube da 1.ª divisão que jogou, nessa época, a Taça UEFA. Rui, só havia um sanitário no nosso balneário. Ainda por cima, sem tampa. Para cúmulo, a porta não fechava. Tínhamos de a segurar, senão…
Ahahahahahahah.
Ri-te, ri-te. Era assim mesmo. Mais, o nosso balneário era o mais básico possíveis, com um só banco corrido e equipávamo-nos um ao lado do outro. Não havia cá lugares marcados e tal. Não havia ar condicionado nem aquecimentos. E havia vidros partidos. Sabes o que significa isso?
Nem ideia.
Correntes de ar. Era do pior, ahahahahahah. Vai lá ver os nossos resultados em casa, só perdemos três vezes: Porto, Sporting e Vitória Setúbal. Ah pois é. Durante seis meses, treinámos sempre atrás de uma baliza, em 40×50. O relvado principal era só para o jogo e ficava facilmente inundado. Quando chovia e como não havia drenagem, aquilo parecia mais o Rio Douro. Já para não falar dos salários em atraso. Acontecia com regularidade. Apesar dos esforços de toda a gente. Quero dar ênfase a esse ponto. Era um clube muito unido, cheio de alma. Daí o 5.º lugar em 1993 e o 10.º em 1994. Duas épocas fantásticas, depois do tal golo do Abílio na Luz. Que tempos, fabuloso.
Obrigado por tudo.
Obrigado eu, grande meia hora de recordações. Grande abraço
Abcccc.