Diamantino. “Dávamos a bola ao Chalana quando estávamos à rasca”

Quem Te Viu E Quem TV 06/04/2020
Tovar FC

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Diamantino. “Dávamos a bola ao Chalana quando estávamos à rasca”

Diamantino é o máximo. Assim de repente, três lances de génio: o túnel a Fenwick no golo de Carlos Manuel à Inglaterra no Mundial-86, o chapéu formidável a Zaki (Marrocos) ainda no Mundial-86 e a espantosa jogada individual vs Sporting na final da Taça de Portugal 1987. Génio e figura. A jogar e a falar. Porque a sua memória é ziguezagueante.

Era uma vez, dez portugueses e um sueco

Bom dia Diamantino, tudo bem?

Tudo impecável, e tu?

[nem espera pela resposta, é um regabofe]

Aquele jogo é em Anfield? É o 3:1?

Errrrr [estou a ver os meus apontamentos]

Se é esse do 3:1, foi na época em que o Eriksson meteu-me a jogar a ponta-de-lança, quase sempre no lugar do Nené, e ao lado do Filipovic. E a verdade é que me dei bem, era muito facetado, ahahahahahahah [prepara-te, é a primeira de uma série infinita de gargalhadas]. Cheguei a estar à frente da corrida da Bola de Prata para o título de melhor marcador da 1.ª divisão. Só que, de repente, apareceu o dérbi em Alvalade.

E então?

Falhei um penálti, defendeu o Katzirz. Nesse mesmo dia, há outro penálti e marca o Nené, acaba 1:0 para nós. A partir daí, o Eriksson mete o Nené a ponta-de-lança e eu passo para médio. Mesmo assim, acabou com 19, atrás do Gomes com 21 e do Nené com 20.

Maravilha. Mas não, este é o Liverpool 1:0 Benfica.

Aaahhhhhh, então é o da época anterior. Só um último detalhe desse 3:1 em Anfield.

À vontade.

Marquei um golo quase em cima da linha de fundo, enganei um central e o Grobbelaar. Depois, na Luz, para a 2.ª mão, ganhámos 1:0 com Pietra e Dalgish expulsos ainda na primeira parte e o José Luís, acho que foi ele, a falhar um golo incrível a dois minutos do fim. Golo esse que nos daria a qualificação. Nessa noite, acabei a defesa-direito. Era a época do Csernai.

Que tal o Csernai?

O Csernai? Dava para dois livros. A malta tinha-lhe um medo que se pelava. O gajo era húngaro-alemão, todo das regras. Ahahahahah, estou a lembrar-me de uma bronca do Nivaldo. Que coisa, ahahahahah.

Conta, conta.

O gajo não podia com o Nivaldo. Não me perguntes porquê, ele só tinha dois amigos: o Pietra e o Carlos Manuel. O resto, tchau. Nem o Toni, adjunto. O gajo não pedia opinião nenhuma ao Toni nem o deixava entrar em lado nenhum. Dizia eu, o gajo não podia com o Nivaldo. Um certo dia, treinávamos nós no campo número 2, ao pé da Segunda Circular. Imaginas um túnel deste Estádio da Luz até ao Colombo?

A sério? Enorme.

Pois, era desse tamanho. E íamos a pé do balneário para o treino. Um dia, o Nivaldo atrasou-se. Ele morava na Linha, Parede ou Paço de Arcos. Era um paz d’alma, o Nivaldo. Falava baixinho e tudo. Dentro de campo, dava pau que doía. Tecnicamente era dos caraças e fisicamente era grande, estilo William Carvalho, mas mais lento. Tinha feito grandes épocas em Guimarães, era um bom médio defensivo, com boa leitura de jogo e forte nas dobras. Se tivesse mais 15/20 metros no seu jogo, seria perfeito. Seria um Elzo, vá.

O brasileiro do Mundial-86?

Esse mesmo. O Elzo era arrastava a equipa com a bola no pé. Já o Nivaldo fazia a cobertura aos médios laterais, roubava bolas e entregava-as limpinhas, estilo Busquets. Bom, isto tudo para dizer que o Nivaldo chega atrasado ao estádio, equipa-se e entra no túnel para treinar. Quando o vimos a sair do túnel e a dirigir-se ao Csernai, já adivinhávamos problemas. Porque sabíamos que mais valia nem ir ao treino. O gajo ficava lixado se tu aparecesses atrasado. E o Nivaldo só estava cinco minuto atrasado. O Nivaldo passa a pista de atletismo, atravessa o campo e vai pedir desculpa ao Csernai. Não é que o gajo dá-lhe um empurrão e o Nivaldo quase cai? Ahahahahah. Havia de tudo, malta a rir e malta já de cabeça perdida, a querer tirar desforço do Csernai. O gajo era mesmo fora, dasssss.

Só para veres, havia malta farta do homem e estávamos dispostos a tudo. Às tantas, o Braga oferece-nos 850 contos mais casa. O Braga do Mesquita Machado, presidente da Câmara e presidente da AG do Braga.

Oferece-nos?

A mim, ao Carlos Manuel e ao José Luís.

O Braga queria esses três?

Ya.

Por 850 contos cada?

Nem mais.

E quanto ganhavam vocês?

O salário mais alto do Benfica era 300 contos.

Então o Braga oferecia quase o triplo?

Mais casa. Quando estamos a equipar-nos para a final da Taça de Portugal, em pleno Jamor, com o FC Porto, o presidente Fernando Martins chegou ao pé do Csernai e disse-lhe que nós os três não jogávamos.

Uyyyy, e o gajo?

‘Okay, vocês o boss; diga-lhes isso’.

Uyyyy, e o presidente?

Está quieto. Cortou-se, claro.

Mas como é que vocês sabem isso tudo?

Sabes quem é o doutor Pedro Magro?

Esse nome não me é nada estranho. [lembro-me depois, é médico da FPF nos anos 90 e século XXI]

Em 1984/85, o doutor Pedro Magro é um estudante de borbulhas, magro. Olhavas para eles e percebias que era um marrão autêntico. Pequenino, andava com os pés para o lado. Um personagem, Estudante de alemão, foi ele o tradutor do Csernai durante toda a época. E, claro, estava lá na conversa entre o Fernando Martins e o Csernai.

Quem ganha essa final da Taça, já agora?

Benfica, 3:1. Na semana seguinte, o Bento dá uma entrevista à Bola em que descasca o Csernai todinho. Ahahahah. O Bento era uma figura.

Por falar nele: em Liverpool, número 1 é o Bento.

Nunca era culpado de nenhum golo. Havia grandes guerras entre ele e os defesas. Às vezes, dava um frango de todo o tamanho e culpava alguém. Se a dupla de centrais fosse Humberto e Bastos Lopes, a culpa era sempre do Bastos Lopes. Ahahahahah. Pobre Bastos, sempre a apanhar. Agora, uma coisa: o Bento foi dos melhores que vi, em campo e na televisão. Com uma estatura que hoje dificilmente se aceitaria no futebol, tinha duas características imperdíveis, que, hoje, não vejo em nenhum guarda-redes, seja português ou estrangeiro: a saída dos postes e a velocidade de reacção.

Vamos por partes: saída dos postes.

O Bento fazia a cobertura aos centrais até ao risco da grande área, aquilo era tudo dele. Se falhasse, estava o caldo entornado. Mas era raro, tão raro.

Velocidade de reacção.

Se um jogador se isolasse, o Bento esperava pelo momento certo para atacar a bola. Estás a ver quando as leoas atacam, devagarinho, todas curvadas para baixo, sem se mexer muito, e, de repente, disparam? O Bento era assim. Esperava, esperava, esperava, quanto avançava pseudo-timidamente. Depois dava o salto e anulava o golo anunciado.

Como pessoa.

Ahahahahah. Epá, resmungão e, às vezes, até agreste. Para quem não o conhecesse bem, levava-o a mal. Mas eu conhecia-o bem, tal como o Chalana, o Carlos Manuel e o José Luís. Fazíamos a célebre viagem na carrinha do peixe todos os dias, de casa para a Luz e da Luz para casa. Então conhecíamos o Bento como ninguém e sabíamos como chateá-lo até à medula. Mal ele se passasse, era o fim. Nunca mais me esquecerei de um treino no Jamor em que estamos a fazer remates à baliza. O Bento defende umas bolas e deixa entra outras, como é normal. Quando é golo, há malta nas bancadas a dar aquelas bocas foleiras do ‘frango’, do ‘peru’ e tal. A malta para o picar só dissemos isto ‘ouve lá, se fossemos nós, estavas a espingardar; como são eles, não fazes nada?’ Bem, foi alguém da bancada dizer uma coisa e o Bento trepou as escadas. Ele era assim, de repentes, com um aparente mau feitio. Um bom, grande capitão. Atenção, é importante dizer isso: grande capitão.

Veloso, 2.

Lembro-me de ter dado uma entrevista em que me perguntavam quem era o adversário mais difícil de passar. Respondi o Veloso. Porque só jogo com os outros duas vezes por semana, com o Veloso era todos os dias. E o gajo tinha uma genica inacreditável. A reacção do Veloso á perda de bola era a mais eficaz que vi. Chegavas à frente dele, driblavas e, quando achavas que o assunto estava arrumado, ele aparecia-te à frente. A sua consistência era brutal. Os treinos eram sempre a 300 à hora, daí a carreira longa e sempre ao mesmo nível. Vê-lo aos 35 anos era como vê-lo aos 25.

Oliveira, 3.

Nascemos os dois em Sarilhos Pequenos e morávamos porta com porta naquelas ruas de areia, ainda sem alcatrão. Conhecemo-nos desde miúdos e foi uma felicidade enorme cruzar-me com ele no Benfica. Era um central muito eficiente, bom pé esquerdo, muito alto, bom jogo aéreo, pautava pela eficiência sem dar muito nas vistas. Por falar em eficiência, o mais efiaz que vi foi o Bastos Lopes. Todos aqueles que brilharam ao lado dele, desde Humberto aos outros todos, muto do seu êxito devia-se ao trabalho de sapa do Bastos Lopes. Era dos melhores a fazer carrinhos e era o melhor a desarmar em deslizamento, muitas vezes com três ou quatro metros de atraso. Sacava a bola aos gajos com uma limpeza. Como pessoa, low profile, tranquilíssimo. Nunca se dava por ele, seja em estágios ou viagens.

Bastos Lopes, 5. Saltámos o Álvaro, 4.

Um jogador mediano que ganhou muito em ter à sua frente o Chalana, um dos melhores que vi jogar.

Carlos Manuel, 6.

Um dos melhores médios com quem tive o prazer de jogar. Para ser um craque mundial, faltava-lhe um pouco mais de técnica. O Carlos tinha quase tudo: ia de área à área e fazia-o facilmente; boa visão de jogo, pontapé muito forte, com alguma velocidade. Passámos grandes momentos e conhecemo-nos desde os 9 anos, quando vim de Sarilhos para a Moita. Jogávamos à bola na escola, nas ruas.

Nené 7.

Dos jogadores mais inteligentes/espertos que vi jogar, em termos de eficácia, de chegar ao golo. Aquela célebre frase de não sujar os calções só diz bem dele. Tinha uma velocidade enormíssima e sabia mexer-se como ninguém dentro da área. Com treino, aquilo passou a ser mecânico. Eu pela direita e o Chalana pela esquerda, quando saíam os em velocidade para fazer o cruzamento, já sabíamos a missa: se o Nené corresse na direcção do segundo poste, era para meter no primeiro; se corresse na direcção do primeiro, era para meter no segundo. Era já um clássico. E depois havia a qualidade dos golos, quase todos em curva, em banana. Há poucos fora da área. Dentro, era o rei. Metia-a lá dentro como só ele sabia. E nenhum guarda-redes conseguia contornar essa verdade absoluta.

Stromberg, 8.

Chega completamente desfasado do futebol português. Ao fim de 15/20 dias, brincava connosco e dizia ‘aprendi mais a olhar para vocês do que a treinar. Elogiava a nossa suavidade do passe, o toque em habilidade. Como era sueco, trazia influências do futebol inglês e tinha uma grande paixão pelo Liverpool. Ei-lo, no palco, em Anfield. Ahahahah. O Eriksson foi buscá-lo e abdica automaticamente do Alves. A sua explicação foi muito simples: ele queria um futebol mais rectilíneo, não queria desperdiçar o passe curto e a técnica de Portugal, mas queria mais velocidade e verticalidade no jogo, mais presença na área. A verdade é que a combinação Carlos Manuel-Stromberg veio dar uma dimensão física muito diferente, para melhor. Evoluiu tanto tecnicamente, à conta do trabalho, que aperfeiçoou movimentos, melhorou a técnica e saiu para o melhor campeonato do mundo [Atalanta, Itália].

Ele aprendeu português?

Na boa. E era um companheiro fantástico. Aos domingos, depois dos jogos, o Stromberg bebia como jogava: enquanto nós pedíamos uma bebida, ele pedia duas. Dizia que não podia perder tempo, porque o empregado demoraria imenso tempo a trazer uma segunda bebida, ahahahah.

Fala-se muito da frieza dos nórdicos?

Nada, nada, zero. Muitos almoços e jantares eram na casa dele, em Cascais. Tanto o Stromberg como o Manniche eram muito dados e brincalhões.

José Luís, 9.

Tinha feito quase todo o seu percurso na formação do Benfica e era um extremo puro. Como dava nas vistas pela velocidade, aparecia muito e bem nas costas dos defesas-esquerdos. Com o Mortimore, lembro-me bem, aprendeu o cruzamento banana e fazia-o como ninguém.

Chalana, 10.

Dizem-me ‘ah e tal, o Diamantino conseguia jogar à direita, à esquerda, ao meio’. Isso é tudo verdade, mas dávamos a bola ao Chalana quando estávamos à rasca. Por muito bons que fossemos, o Chalana sempre foi o melhor. A seguir ao Eusébio, foi o melhor. Aquilo não tinha explicação e seria curioso ver quantos defesas-direito foram substituídos durante o jogo só à conta dos entortanços do Chalana. A sério, vê isso. Nunca vi tantos a saírem, coitados. Em jogos europeus, até. O problema é que isso da substituição nada resolvia. Saía um, entrava o outro e o festival do Chalana continuava. Olha, um exemplo bom é o Portugal-Espanha do Euro-84. O lateral-direito era o Urtiaga, basco à séria, do Athletic Bilbao, viril e tal, mesmo a imagem da fúria espanhola. O rapaz deve ter refletido sobre a sua carreira mnesse dia porque levou um chocolate tão grande, tão grande, tão grande.

Grande Chalana.

Há até uma história engraçada: como não havia escola secundária na Moita, fui estudar para o Álvaro Velho, ali no Lavradio, perto do estádio Alfredo da Silva, da CUF. Costumávamos jogar à bola num largo ao pé do rio, muitas vezes a fugir da GNR a cavalo, que vinham com chicote e tudo para nos roubar a bola. Falei desses tempos e, às tantas, o Chalana diz-me que também jogava aí. Sem querer, já nos conhecíamos.

Diamantino, 11. Sempre o 11?

Os números eram por estatuto e só comecei a usar o 11 quando o Shéu deixou de jogar. Havia hierarquias em tudo, coisas boas que se perderam e que transmitem disciplina ao grupo. Até os próprios treinadores faziam por isso e tinham a mania de começar o treino com os mais velhos à frente e os mais novos atrás. Com as camisolas, a mesma coisa: se chegasses ao Benfica e quisesses um número, tinhas de esperar. Fosses quem fosses. Mas a verdade é que nunca liguei muito a isso, embora gostasse do 11, porque era o meu número nos juniores do Vitória FC. Aquela coisa do extremo, aquela afeição.

Em boa verdade, não foste o 11 no Euro-84 nem no Mundial-86.

Verdade. No México, calhou-me o 10, um número cheio de peso, hoje e sempre. Mas não queria o 10 e acabou por ia para o Futre, o miúdo e a coqueluche do grupo.

E ficaste com o?

17, que foi o meu número no Mundial sub-20 em 1979, no Japão.

E o Euro-84?

Aí fui o 19, o meu número no Europeu de juniores 1977, na Polónia.

Grandes histórias.

Quando isto passar, temos de ir almoçar.

Para fazer os dois livros do Csernai?

Ahahahahah. É uma ideia.

Quando formos, convidamos alguém que também tenha histórias como as tuas.

Convida o Carlos, convida o Carlos [Manuel].

One Comment
  1. Jorge Rovisco

    Que privilégio aceder a estes momentos ; um pedido Rui, entrevista o Carlos manuel, mas principalmente o Néné !!!!

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