Costinha. “Assinava Diego Maradona no livro de ponto. E andava numa escola de freiras”
Francisco José Rodrigues da Costa. Aqui para nós todos, do mundo da bola e não só, é o Costinha. Para o Thierry Henry é o Ministro. Um senhor alto e magro com o culto da elegância. A carreira de futebolista proporciona-lhe mais altos que baixos, entre títulos. Uns nacionais (em França, pelo Monaco, e Portugal, pelo FC Porto), outros europeus e até mundiais. Nessa viagem sensacional e louca, do Oriental à Atalanta, um total respeitável de 53 internacionalizações (dois golos). Faz-se trinco, famoso por ir lá à frente e marcar golos decisivos, como o 1-1 ao Manchester United em Old Trafford ou o 1-0 à Roménia no Euro 2000, mas somos nós que andamos atrás dele. Desde 26 de Fevereiro.
O registo dos SMS não falha. Um dia ele não pode. No outro somos nós a dizer que fica para a próxima. Depois é ele, outra vez. Eeeeeeee isto parece encravado. Até que Costinha solta a bola e estende-nos a passadeira vermelha. Com direito a escolhermos local e hora. Muito bem: ao meio-dia na Quinta das Conchas. Dito e feito. Costinha dá sinais de si. Com a boa disposição do costume e um sorriso constante durante quase uma hora a acompanhar histórias do além. Da meninice até agora. Ele é que começa a puxar-nos para os tempos do antigamente. “Epá, g’anda pinta. Isto é engraçado, espaçoso. E verde.” Pois, o Parque das Conchas não deixa ninguém indiferente. “Numa destas ruas detrás, o meu pai costumava estacionar para irmos à bola. Mas nunca passei por aqui, era um terreno baldio. Agora não, está bem bom. Até tem espaço para jogar à bola, adultos e crianças. ‘Tá bonito ‘tá.” Acaba-se o recreio, agora vem aí a aula.
Isto faz parte da tua infância?
Muito. O meu pai e o meu tio traziam-me sempre a Alvalade para ver o Sporting. Quer dizer, sempre não é bem. Quando era um jogo de risco, lá me engavam e ficava a ouvir o jogo pela rádio, em casa, com a minha mãe.
Enganavam-te como?
Uiii, é o truque mais antigo do mundo para quem é criança. A minha mãe chamava-me da cozinha ou da casa de banho, eu ia lá e quando voltava à sala já não havia pai nem tio para ninguém. Os dois já estavam de abalada para Alvalade. Atenção, isto só acontecia em jogos grandes, com Porto e Benfica, em que a confusão era maior.
Excepção feita a esses jogos, lembras-te do primeiro?
Tche, isso é muito difícil, não consigo ir até aí. Lembro-me, isso sim, de ter ido a Alvalade no jogo do título de campeão em 1980. Não me perguntes o resultado, só sei que era a União de Leiria. E ganhámos com dois golos do Jordão [3-0, o outro é de Manuel Fernandes]. É o tempo daquele trio fenomenal, com Jordão, Manuel Fernandes e Oliveira. O meu preferido era o Jordão. Que máquina! A maneira de jogar dele era extraordinária, conseguia desenvencilhar-se do maior problema com a maior das simplicidades. Parecia uma enguia. A gente, falo dos adeptos, e também deles, dos adversários, pensava ‘pronto, já foste’, e ele de repente isolava-se com uma categoria… O Jordão também é assim na vida pessoal. Mal abandonou o mundo da bola dedicou-se a outras artes. Jordão, portanto.
E outros ídolos de infância?
Uiii, o maior. Diego Maradona. Eu assinava Diego Maradona no livro de ponto da escola. E andava numa escola de freiras! No Externato de São Miguel Arcanjo, ali na Portela. Passavam o tempo a querer desviar-me para outros trabalhos que não o futebol. Porque é uma profissão com prazo de validade, porque isto e aquilo… A conversa do costume, sem pés nem cabeça. E eu lá mantive o meu nome: Diego Maradona.
Ídolo a que ponto?
A ponto de ter o quarto forrado com posters dele. A ponto de seguir o Nápoles como um napolitano. A ponto de festejar os golos da Argentina.
Então sabes onde estavas no dia do 2:0 do Maradona à Inglaterra no Mundial 86?
Claro que sim. Em casa, a ver pela televisão. E até sei como estava vestido e calçado. E quem estava ao meu lado. Não imaginas a febre.
Acho que sim, tive uma parecida com o Van Basten.
Pfff, bem escolhido, bem escolhido. És do Norte, do Milan. Eu sou do Sul, do Nápoles. Tu és rico, eu sou pobre. Eheheheh. Esse Milan também era um tratado de bola, chiça. Rijkaard, Gullit, Donadoni, Albertini, Maldini, Baresi, Costacurta, Tassotti… Mas atenção, o meu Nápoles tem Garella na baliza, Ferrara, Francini, Renica na defesa, Alemão, Crippa, De Napoli e Crippa no meio, Carnevale, Careca e Maradona na frente. Imbatível. Dois títulos de campeão em quatro anos. Inesquecível.
E a febre pelo Maradona tem fim?
Claro que não, então… [faz um ar de pseudo-enfado e parte-se a rir logo a seguir]. Diego é Diego. Se no Mundial-86 o pessoal daqui ainda queria que o Maradona ganhasse, a coisa é diferente no Mundial-90. Porque a Argentina está mais fraca e joga muito à defesa, só com Maradona e Caniggia lá à frente. Lembro-me como se fosse agora de estar num café na rua de casa dos meus pais a ver o desempate por penáltis entre Jugoslávia e Argentina, nos quartos-de-final. A Argentina começa mal, o pessoal do café começa a entusiasmar-se em demasia e eu aviso-os ‘isto ainda não acabou’. Uns minutos depois, e mesmo depois de Maradona ter falhado o penálti para defesa de Ivkovic, a Argentina elimina a Jugoslávia. E eu saí a festejar. Era o único contente no meio daquela malta. Acredita. Maradona, então? Para a geração dos anos 80 é uma referência. Goste-se ou não, Maradona é Maradona. Ainda hoje. É uma figura marcante. Dentro e fora dos relvados. Mas dentro é o maior.
Jordão e Maradona, há espaço para mais alguém?
Oceano.
Como é que é?
Ah pois, ouviste bem: O-c-e-a-n-o. Vê-lo era um regalo. Não havia ninguém a esforçar-se como ele, não havia ninguém com o seu querer, a sua dinâmica. Era uma força do além. Lembro-me dele logo no início dos tempos no Sporting, acabado de vir do Nacional, onde também cheguei a jogar. O pessoal de Alvalade chamava-lhe tosco e tal. Ninguém acreditava que ia jogar muito, mas a verdade é que o Oceano se impôs com naturalidade. E jogou com todos os treinadores. E foi internacional por Portugal. [Pausa.]
Continua, continua, estás a ir bem.
Eheheheheh. Sim, o Oceano não ganhou tantos títulos como devia. Acho que nem foi campeão nacional, mas suava aquela camisola. E suava como ninguém. E sentia o clube. Fosse onde fosse. É uma referência. Tanto aqui [e aponta para trás, onde está o estádio do Sporting] como ali [e aponta para a frente, onde se agrupam todos os clubes da sua carreira, como Nacional, Cova da Piedade e Real Sociedad].
Oceano.
Tenho uma história com ele. Toda a gente sabe que sou do Sporting. Nunca o escondi, e até o facto de contar as minhas idas a Alvalade em criança diz tudo. Sabes quando joguei pela primeira vez em Alvalade a nível profissional? Pelo Monaco, para a primeira jornada da Liga dos Campeões. O treinador Jean Tigana pôs-me a titular e eu senti que aquilo ainda não era para mim. Afinal tinha saltado do Nacional, da 2.ª B, para o Monaco, campeão francês. Acusei o golpe. Havia coisas que não dominava dentro do campo. Tinha de ir aprendendo. E aprendi. Só assim se chega à selecção nacional, por exemplo. Nessa noite europeia, a minha primeira na Liga dos Campeões, o Sporting ganhou 3-0. Eu estava desolado. Quem me apareceu à frente para me confortar e dar a camisola? O Oceano. Disse-me coisas que não esquecerei. Animou-me numa noite má. O Oceano é assim.
Se o Sporting é o teu clube, porque nunca jogaste lá?
Bem quis mas não se proporcionou. Ainda fiz uns testes de captação, aos 14 anos de idade. Aquilo é um mar de miúdos. Uns passavam, outros chumbavam. Os que passavam iam treinar novamente no dia seguinte. A mim disseram-me que voltasse, e eu todo contente. Eis senão quando… À saída vi o pai de um miúdo a discutir com o treinador porque o filho dele não tinha sido escolhido. No dia seguinte cheguei lá e vi o miúdo a equipar-se e pensei “olha, olha, ai isto é assim?”. Fui-me embora e não voltei.
E foste para onde?
Oriental. Jogar no Engenheiro Carlos Salema é uma honra, meu amigo.
Tens histórias por lá?
Se tenho? Passei lá a infância e a adolescência. Via os jogos todos, o calendário batia sempre certo: quando o Sporting jogava fora, o Oriental recebia alguém. Aquilo lá tem história, mística. O Oriental é um grande à sua maneira. Os dérbis com o Olivas e Moscavide, ui ui uiii. Era fogo!
Qual foi o melhor golo que viste lá?
Deixa-me ver [mete os dedos entre os olhos e cá vai], um do Capucho, em 1991, pelos sub-20. Antes, pouco antes, de sermos campeões mundiais na Luz, a selecção do Queiroz foi jogar ao Carlos Salema com o Oriental e o Capucho marca um daqueles golos dos dele, um chapéu brutal sobre o guarda-redes.
Esse Mundial sub-20, vibraste com ele?
Vi todos os jogos de Portugal menos o da estreia, com a Irlanda, nas Antas. De resto, ia sempre à Luz. Incluindo a final. Que espectáculo! Mais: digo-te uma coisa que nem o meu pai sabe. Baldei-me às aulas para ver o 1-0 à Coreia. Saí mais cedo e… [mete as mãos uma na outra e sai um som estridente, como quem diz ‘já ‘tou a caminho’].
O teu pai queria que fosses futebolista?
O meu pai era o motorista do dono da quinta e a minha mãe era cozinheira. Venho de uma família muito humilde e o meu pai não podia estar a pôr comida na mesa para três filhos e sonhar ver-me a jogar à bola. Nem sequer pagar-me as quotas do Sporting. Só o fui bastante mais tarde, quando houve essa possibilidade. O meu pai, isso sim, sempre quis que eu fosse licenciado. Eu até era bom aluno, mas era calão. Uma história: pedi-lhe para ir jogar no Oriental e ele: “Quando tiveres positiva a Matemática, deixo-te ir.” Então estudei, estudei, mas tive 33%. O que é que fiz? Emendei um 3 para um 8, ele viu lá 83%, ficou muito contente e deixou-me ir.
Ahahahaha. Jogavas onde?
Onde quisessem. Um dia faltava um defesa-esquerdo e o treinador perguntou se havia ali um defesa-esquerdo. Eu nem hesitei, levantei o braço e lá fui. Conquistei o meu espaço e cheguei a capitão em todas as camadas jovens.
E os teus pais, iam ver-te?
Não era costume. E quando era… [faz uma expressão de enfado]. A primeira vez que me foram ver apanhei 26-0 do Vitória de Setúbal.
Disseste “vinte e seis”, certo?
Isso, 26 a zero. Foi um particular e eles estavam noutro patamar. Nem víamos a bola. Mas também há alegrias, claro. Nunca ganhei ao Sporting mas empatei com o Benfica, por exemplo.
Da 2.ª B de Portugal para a 1.ª de França…
Engraçado. A minha vida já deu voltas e mais voltas. Repara, aos 23 anos estava na 2.ª B, com o Nacional. Nunca pensei que ia subir daquela forma.
Como se sobe, então?
Em 1994/95 fiz a primeira época como profissional, no Oriental, 2.ª divisão B [26 jogos e três golos]. Ficámos em 11.º lugar e o campeão dessa zona sul foi o Alverca. Em 1995/96 já estava no Machico [30/5], outra vez na zona sul da 2.ª divisão B. Acabámos em segundo lugar, a sete pontos do Beja. Na época seguinte, 1996/97, já estava no Nacional [27/4]. Ao lado do Fernando Aguiar, o Robocop. É verdade, eu e ele. A força e o cérebro, ahahahah. Estou a brincar, não mostres isso ao Fernando. É uma pessoa espectacular, sempre muito brincalhão e amigo.
E aquele físico?
Impressiona, garanto-te. Subimos juntos à 2.ª divisão, sem dificuldade [15 pontos de vantagem sobre o Santa Clara]. E aparece o Valencia.
O Valencia?
O Valencia. Assinei por cinco anos, mas o mundo desabou quando me encontrei no hotel com o Jorge Valdano [o treinador]. Disse-me que eu era uma contratação do presidente [Francisco Roig] e não dele. Ele queria um trinco como o Mauro Silva do Deportivo, o Guardiola do Barcelona ou o Redondo do Real Madrid. Eu não estava preparado para suportar essa carga de exigência do treinador [curiosamente despedido na terceira jornada, com zero pontos em nove possíveis]. Então apareceu o Monaco. Eles queriam um médio e a primeira opção não aceitou sair do clube, o Paulinho Santos, do FC Porto. Fui eu e, no final do segundo treino, o Tigana [treinador] perguntou-me se queria ficar. Respondi-lhe: “Claro que sim.”
A partir daí, o céu é o limite?
Nem tanto. Os primeiros tempos do Monaco foram difíceis. Ajustar-me à dinâmica de um clube de outro patamar, ir conquistando a confiança do treinador.
O Tigana, certo?
Esse mesmo.
Da famosa França.
Claro que sim: Tigana, Rocheteau, Giresse e Platini. Aquilo era um tratado de bola. Sabes o que ele fazia para me irritar de vez em quando? Falava-me da meia-final do Euro 84. Chamava-me “José, José” e depois fazia gestos com as mãos enquanto dizia “Álvaro, Álvaro”. Dizia que o Álvaro é que era o extremo-esquerdo e não o Chalana. Depois do 2:1 do Jordão, Portugal continuou a atacar como nunca e a França aproveitou-se para empatar antes de fazer o 3:2 em cima do último minuto. “José, José”, “Álvaro, Álvaro”. Aquele Tigana, tsc tsc [Costinha abana a cabeça e ri-se].
Segue-se o Porto.
Em 2001 aparece o FC Porto. Que se antecipou ao Sporting e ao Benfica. Só tenho uma palavra, e como já a tinha dado ao presidente do FC Porto [Pinto da Costa].
Dínamo Moscovo.
O presidente queria imitar Abramovich no Chelsea, mas as coisas não correram da melhor maneira. O dinheiro não é tudo na vida e não queria ficar lá para coleccionar euros.
Atlético Madrid.
Fui nomeado um dos capitães de equipa, apenas duas semanas e meia depois de chegar. E pude voltar a jogar nas competições europeias, através da Intertoto. É um clube com uma massa adepta fantástica. Eles enchiam o estádio na 2.ª divisão e isso é raro. E impressionante.
Fim da linha, Atalanta.
Aí não jogava.
Como fazias para passar o tempo?
Era uma dura realidade. Mas, para felicidade minha, quando a Atalanta jogava fora o Inter jogava em casa. Como gosto de futebol e sou amigo de Mourinho, ia ao Giuseppe Meazza. Ele deixava-me sempre dois bilhetes, mesmo que eu não aparecesse. Mesmo em dia de jogo da Atalanta à tarde dava para ir ver o Inter à noite. E ainda tinha o bónus da Liga dos Campeões, para recordar belos tempos em que celebrei o título europeu em 2004, ao lado de Mourinho.