Brasil 1970. O único campeão mundial só com vitórias (até na fase de qualificação)

Kali Ma Mais 06/21/2020
Tovar FC

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Brasil 1970. O único campeão mundial só com vitórias (até na fase de qualificação)

Pelé, número 10 do Santos. Jairzinho, 10 do Botafogo. Gérson, 10 do São Paulo. Rivelino, 10 do Corinthians. Tostão, 10 do Cruzeiro. Cinco 10. É o Brasil do tri. O seleccionador é Mário Jorge Lobo Zagallo, campeão mundial em 58 e 62 como ponta-esquerda. Quem joga a qualificação é outro. João Saldanha, de seu nome. Meio treinador, meio jornalista.

Em 1957, o Botafogo contrata-o apesar da sua total falta de experiência e sagra-se campeão estadual do Rio na primeira tentativa. Dois anos depois, Saldanha é convidado por João Havelange, então presidente da CBD (Confederação Brasileira de Desporto), para assumir a selecção. “Talvez assim os jornalistas não critiquem a selecção tantas vezes”, numa alusão à profissão de João Saldanha, também conhecido como João Sem Medo por se recusar a convocar os jogadores propostos por Emílio Garrastazu Médici, presidente em plena Ditadura Militar.

A campanha de apuramento é exemplar, só vitórias (seis) e apenas dois golos sofridos. Os problemas começam depois. João reabilita a selecção, humilhada na Copa-66 com a eliminação na fase de grupos aos pés de um estreante (Portugal), só que a sua ligação ao Partido Comunista, os rumores de desentendimentos com o preparador físico e a constante recusa em chamar Dadá Maravilha, protegido de Médici, ditam a demissão. Isso mais as insistentes declarações polémicas. Perguntam-lhe uma vez sobre o estado do relvado no Beira-Rio. “Sei lá, nunca comi relva na vida.” Até na hora do adeus, a incontinência verbal é uma realidade. “A comissão técnica foi dissolvida? Não sou sorvete, não posso ser dissolvido.” Pelo meio, a maior polémica de todas, relacionada com Pelé.

“O crioulo está mal, precisa descansar.” A frase do seleccionador arrepia todo o Brasil. O crioulo é Pelé. Caçado em campo no Mundial-62 e no de 1966, primeiro por búlgaros e depois portugueses (Morais é o homem que lhe acerta duas valentes pancadas no joelho esquerdo antes de o afastar do jogo), o 10 brasileiro sonha com o troco para confirmar o estatuto de rei. O problema é João Saldanha. Aquilo do “crioulo está mal” não está fora do contexto nem nada que se pareça, ele não vai mesmo à bola com Pelé. No dia seguinte, outra acha para a fogueira: Pelé está fora do particular com o Chile, por culpa de um problema visual. É isso, o avançado do Santos vê mal de um olho, o direito. Os médicos da selecção dizem tratar-se apenas de uma miopia leve, nada que o impeça de jogar futebol. No máximo, teria de usar óculos para ler. “Nem que seja com lentes de contacto, vou jogar esta Copa”, remata Pelé. A este problema junta-se um outro, relativo à chamada de Dadá Maravilha, do Atlético Mineiro. É o preferido do general Emilio Garrastazu Médici, da ala mais radical dos militares da ditadura. “O presidente escala o ministério dele e eu escalo o meu time”, responde, torto, Saldanha.

Tchau Saldanha. E o sucessor, quem é? Havelange chama Dino Sani, só que as suas exigências são exageradas. A segunda opção é Otto Glória, o homem do terceiro lugar de Portugal na Copa-66, e o cenário repete-se. Ambos pedem muito dinheiro e aí não dá. Surge então a alternativa do plano B. É ele Zagallo, vencedor da Taça do Brasil-68 pelo Botafogo. Nos primeiros tempos, o novo treinador não reúne os cinco 10 no mesmo onze. O intruso é Paulo César Caju no lugar de Tostão. Um particular fracassado com a Bulgária B (0-0) no Morumbi, em São Paulo, vale uma assobiadela monstra ao apagado Caju, do Botafogo, e só aí é que Zagallo se convence da mais valia de Tostão (então a moeda nacional brasileira).

Como reunir os dez todos no onze? Na base da conversa. Tostão vira um 9, Rivelino vai para a esquerda e Jairzinho para a direita. Há dois médios fenomenais como Piazza e Clodoaldo, é preciso que um deles recue se quiser jogar. Zagallo puxa Piazza para central e o 4-3-3 é um carrossel humano. Para manter a organização, Gérson vira o capitão de corpo e alma, a voz de comando do treinador dentro de campo, enquanto Carlos Alberto é tão-só o portador da braçadeira. Há nuances entre o onze do João Sem Medo e o de Zagallo? Ah pois. Cláudio; Carlos Alberto Torres, Djalma Dias, Joel e Rildo; Piazza e Gerson; Jairzinho, Pelé, Tostão e Edu é o de Saldanha. Agora vejam as diferenças para o de Zagallo: Félix; Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza e Marco António (Everaldo); Clodoaldo, Gérson e Rivelino; Jairzinho, Tostão e Pelé.

O Mundial-70 é um hino à magia, com exibições e golos do outro mundo. Ao todo, seis vitórias com 19 golos, sete deles de Jairzinho, conhecido como Furacão da Copa por ter marcado em cada um dos jogos (Checoslováquia, Inglaterra, Roménia, Peru, Uruguai e Itália). Como se diz no Brasil, “foi chover no molhado”. É a gloriosa vitória do futebol moleque sobre a táctica, com todos os jogadores a ocuparem as mais variadas posições, quatro antes do denominado futebol total da Holanda de Rinus Michels. A selecção de 1970 é uma conjunção mágica de um plantel de jogadores não apenas qualificados tecnicamente, mas também dotados de grande inteligência táctica. Juntos se exibem a um nível técnico jamais visto e nunca mais repetido, até hoje falado como a melhor selecção de sempre. A final do Azteca, na tarde de 21 de Junho, é o capítulo final dessa constelação de estrelas. O Brasil coloca-se em vantagem com um extraordinário cabeceamento de Pelé, lá no alto. “Pensei que era de carne e osso, enganei-me”, desabafa Burgnich, marcador directo do rei. Roberto Boninsegna ainda empata para a Itália, após um erro da defesa, antes do Brasil dar um chocolate na segunda parte.

Gérson faz o 2:1 num fantástico pontapé do meio da rua e depois inicia a jogada do 3:1, da autoria de Jairzinho, a passe de Pelé. O 10 (do Santos e do Brasil) faria também a assistência açucarada para o 4:1 de Carlos Alberto Torres, após uma série de toques e tiques, não sei quantos anos antes do tiki-taka. Um total de oito jogadores tocam na bola até o capitão martelar a bola no bico da grande área para o ângulo inferior de Albertosi. A festa do título é tão intensa e espectacular como a campanha do Brasil de Saldanha mais o de Zagallo. Os adeptos invadem o campo, levam os jogadores em ombros e arrancam as roupas deles. Pelé é o mais cobiçado, óbvio.

Contas feitas, cinco assistências e quatro golos. Isso é bom, Pelé é isso e muito mais. O seu trabalho no Mundial é também avaliado pelos chamados golos-não. Há cinco, veja lá bem. O primeiro de todos é com a Checoslováquia. Ao aperceber-se do adiantamento do guarda-redes, Pelé arrisca o golo a 40 metros, ainda antes do meio-campo. A bola sai ao lado e o ar de Ivo Viktor a correr para trás é um mimo. Segue-se a Inglaterra, também na fase de grupos. É o jogo entre os dois últimos campeões mundiais. Aos 9 minutos, um passe brilhante de Tostão abre toda a defesa e o cruzamento de Jairzinho é impecável. Pelé cabeceia com força, de baixo para cima, como mandam as regras. É golo, só pode. Banks voa e faz a defesa do Mundial. Do ano. Do século. Que categoria.

Meia-final vs. Uruguai. Um pontapé de baliza do guarda-redes Mazurkiewicz é mal batido, quase rasteiro. A 25 metros da baliza, Pelé remata de primeira, sem preparação. A bola vai à baliza, incrível. O tal Mazurkiewicz defende-a nas calmas. Na retina, a rapidez de pensamento e execução do 10 brasileiro. Ainda nesse jogo, já na segunda parte: bola lançada pela esquerda para a entrada da área, Pelé e Mazurkiewicz lançam-se. O brasileiro vai que vai mas não vai, o guarda-redes uruguaio é fintado sem bola. Pelé contorna-o e remata, meio desenquadrado, ao lado. G-e-n-i-a-l. Acto contínuo, marca-se o pontapé de baliza e o árbitro dá por fim a contenda, favorável ao Brasil por 3:1.

Último lance de curiosidade maiúscula, na final com a Itália. Está 1:0 para o Brasil, golo de Pelé. De cabeça. Um senhor cabeceamento, aliás. O marcador de Pelé chama-se Burgnich e ainda hoje não encontra explicação para a diferença acentuada de centímetros entre os dois nesse lance. Adiante, estamos no minuto 45+1. Pelé recebe na área, beneficia de um erro defensivo e isola-se. Só tem o guarda-redes Albertosi pela frente. Antes de rematar para golo, o árbitro Glöckner (RDA) apita. Então? É intervalo. Mamma mia.

TODOS OS RESULTADOS DO BRASIL 1970 (SÓ VITÓRIAS e 42:9 EM GOLOS)

Fase de qualificação

Colômbia 0:2

Venezuela 0:5

Paraguai 0:3

Colômbia 6:2

Venezuela 6:0

Paraguai 1:0

Fase final

Checoslováquia 4:1

Inglaterra 1:0

Roménia 3:2

Peru 4:2

Uruguai 3:1

Itália 4:1

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