Seninho. “Passei dois anos e 59 dias na Guerra do Ultramar, como enfermeiro”

You Talkin' To Me? 07/04/2020
Tovar FC

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Seninho. “Passei dois anos e 59 dias na Guerra do Ultramar, como enfermeiro”

Quatro de Julho, dia da independência dos EUA. Quem é o único português a ganhar quatro campeonatos dos EUA? Seninho. Quem é o único português em campo no último jogo da NASL, o primeiro campeonato dos EUA (1968-84)? Seninho. Quem é o único português a jogar na equipa de Pelé? Seninho. Quem é o único português a jogar na equipa de Beckenbauer? Seninho. Seninho, Seninho e mais Seninho. Craque em toda a linha. Nos EUA, 105 jogos, 23 golos e 32 assistências.

O Seninho foi o primeiro português a bisar em Old Trafford, em 1977. Que sensações esse jogo ainda lhe transmite?
Todas e mais alguma. Lembro-me de tudo como se fosse hoje. Até da véspera.

Então o que se passou?
Os jornais ingleses noticiavam uma ameaça de bomba no nosso balneário.

Os famosos tablóides ingleses.
É verdade, mas aquilo não foi nada, nem nunca mais pensámos nisso.

Mas era ou não uma ameaça de bomba?
Não, só folclore para nos distrair. O Pedroto e o Pinto da Costa, aqui ainda como director de futebol, juntaram todos os jogadores e disseram-nos que não pensássemos nisso, transmitiram-nos tranquilidade e confiança. E assim foi.

Conte lá.
Tínhamos ganho 4-0 nas Antas, com três golos do Duda e um do Oliveira, e toda a imprensa mundial acampou em Old Trafford para ver aquela equipa que tinha conseguido esse feito, de golear o United. Em Manchester marquei dois golos, por sinal muito bonitos, que foram decisivos, porque perdemos 5-2, mas seguimos em frente na Taça das Taças [FC Porto eliminado na ronda seguinte, pelo Anderlecht].

Lembra-se dos golos?
Claro. No primeiro fiz uma arrancada, driblei dois ou três adversários pela direita e rematei com o pé esquerdo, já perto da área. Como estava a chover ligeiramente, a bola ganhou muita velocidade quando bateu na relva e o guarda-redes não teve hipótese. Aí fiz o 1-1.

E o outro?
Na segunda parte, e já quando estava 4-1 para eles, há um lançamento do Octávio do nosso meio-campo. Domino a bola, consigo fintar o guarda-redes e como tinha pouca posição, tentei enquadrar-me com a baliza, já que estavam dois adversários em cima da linha de golo. Se com um jogador já é difícil, imagina com dois ò Tovar. Meti a bola no buraco da agulha, por entre as pernas de um deles. Tive sorte porque a bola bateu num dos calcanhares e ganhou um efeito que impossibilitou o corte de quem quer que fosse.

Loucura, não?
O ambiente no estádio era de doidos. As bancadas de madeira faziam um barulho curioso aliado aos cânticos dos adeptos deles, que faziam estremecer o chão, mas quando peguei na bola e driblei o guarda-redes, nesse 4-2, todo o estádio ficou num silêncio arrepiante. Esse som, ou falta dele, nunca me sairá da cabeça. Foi como se de repente baixassem o som de uma televisão.

Acabou 5-2 e o FC Porto passou. Uma festa, imagino.
Estávamos todos contentes, claro. Bem, o Murça, que também marcou dois golos, mas na própria baliza, estava algo desanimado, mas tratámos logo de o fazer sorrir, no balneário e depois durante o jantar. Afinal tínhamos eliminado o grande Manchester United. Quando chegámos ao Porto, a algazarra era imensa nas ruas. As pessoas receberam-nos com entusiasmo e vibração, foi uma experiência sensacional.

Esse jogo mudou a sua vida?
Sem dúvida.

Porquê?
O meu empresário, Abdul Zubaida, chegou ao pé de mim e apresentou-me quatro propostas.

Quatro?
Milan, Atlético Madrid, Manchester United e Cosmos.

E o que se decidiu?
A minha transferência. Atenção que estávamos em Novembro 1977 e o meu contrato só acabava em Junho do ano seguinte. Qualquer que fosse a proposta, só podia sair do FC Porto em Junho 1978.

E o que se passou?
Não queria o Milan, por causa do catenaccio. Eu, como extremo, não me identificava muito com defesas fechadas e recuadas. Também não queria o Atlético Madrid, porque o campeonato espanhol era muito violento. Também não queria o Manchester United porque o futebol inglês era kick and rush. Literalmente bola para a frente e logo se vê.

Falta o Cosmos.
Na manhã seguinte ao United-Porto reuni-me ao pequeno almoço, com o Abdul Zubaida e dois membros do conselho de administração da Warner Communication, proprietária do Cosmos e de muitas outras coisas, como os estúdios da Warner Bros.

Isso em Manchester?
Exacto, num outro hotel que não aquele onde estava o FC Porto.

E?
Eles ofereceram-me um contrato de meio milhão de dólares, qualquer coisa como 20 mil contos. Irrecusável em 1977. Naquela altura, ganhava 30 contos por mês no FC Porto.

E o FC Porto?
Antes desta reunião com o Cosmos, um mês antes, o FC Porto já me tinham proposto a renovação do contrato e perguntaram-me quanto é que queria. Pedi 50 contos.

E a resposta foi?
“Mas quem és tu para ganhar 50 contos?” Contei-lhes da proposta do Cosmos e eles duvidaram. Telefonei à Warner Communications e pedi-lhes que formalizassem a proposta através de um fax, aliás telex. Na manhã seguinte, um rapaz bate-me à porta de casa e entrega-me um telex da Marconi. Com este documento oficializa-se o interesse. Só saio do FC Porto em Junho de 1978, depois de acabar o campeonato português.

O FC Porto criou mais obstáculos?
Alguns, sim. Propuseram-me que se lhes desse 15 mil contos me deixavam-me sair em Junho. Disse-lhes que não, que eles não tinham direito a receber nada, até porque ia para um campeonato não reconhecido pela FIFA, a NASL (North-American Soccer League). Houve mais alguns problemazinhos aqui e ali, mas resolveram-se.

Então?

Uma vez, o Pelé ligou-me e disse-me: “Seninho, estamos à tua espera. Qual é o problema? Atenção que não é só pelo jogo de Manchester. Se for preciso, falo com alguém do FC Porto.” Mas não foi preciso. Em Junho fui campeão nacional pelo FC Porto, uma proeza inesquecível. O FC Porto não era campeão há 19 anos.

De 1959 a 1978, um homem em comum: Pedroto.
Era um homem extraordinário. Sabia falar com os jogadores. Às vezes, dizia-me assim: “Seninho, amanhã vais para o banco de suplente comigo e só te faço entrar na segunda parte para rebentares com eles.” É uma forma simpática de dizer que vais ser suplente. Eu compreendia-o.

Pronto, o FCP é campeão e o Seninho a caminho de Nova Iorque?
Sim, mas em vez de 15 mil contos concordei entregar oito mil contos ao FC Porto. Fui eu voluntariamente que ofereci, porque o FC Porto é o meu clube do coração e também a minha casa. Fui para Nova Iorque e sabe quem levei comigo?

A sua família?
Calma. Sabe quem levei comigo para ler o contrato e aconselhar-me?

Não faço ideia.
O Américo de Sá.

O presidente do FC Porto?
Exactamente. Ele era advogado e levei-o comigo. Era um homem muito bom, com princípios e extremamente educado.

Conte.
Em 1975, o FC Porto contrata um treinador jugoslavo chamado Branko Stankovic. Um homem com treinos já virados para o futuro, do ponto de vista físico e técnico. Nesse Verão, o FC Porto e eu estávamos num braço-de-ferro sobre a minha renovação. Eu queria ganhar 25 contos por mês, eles não mos queriam dar. A determinada altura, aquando da partida para o estágio de início de época, na serra da Estrela, pararam-me à entrada do autocarro do clube e perguntaram-me: “Seninho, assinaste o contrato?”, e eu repliquei “não!” Então disseram-me: “Aqui só entra quem assinou.”

Porquê?
Dizem-me que não vou treinar mais até aceitar as condições propostas pelo clube para a minha renovação. Agarrei no meu carro e voltei para o Porto, com o coração apertado e revoltado. Só queria um aumento de ordenado por achar justo. Então eu tinha estado na Guerra do Ultramar…

Pare, pare, o quê?
Sim, entre 1970 e 1974, fiz quatro anos de tropa. Passei dois anos e 59 dias na Guerra do Ultramar.

Como soldado?
Enfermeiro.

Nem sei o que perguntar-lhe mais…
Posso dizer-lhe que uma das mais terríveis foi ter passado oito meses isolado no meio do mato, perto da Zâmbia. Quando saí de lá foi um alívio. Acolheu-me a família Bragança, no Luso – Moxico (Angola). Quero dizer o nome da família porque foi muito importante para mim, em estabilidade emocional.

Portanto foram quatro anos perdidos para o futebol?
Não totalmente. Joguei no Moxico e até fui campeão angolano, em 1973. Mas não era a mesma coisa. Jogava-se com medo, estávamos num território em guerra, tudo muito confuso, mas dava para espairecer. Sem dúvida que o futebol é um escape para tudo.

E regressou ao FC Porto em 1974?
Sim.

Estava em forma?
Sim. A minha velocidade era tanta que alguns jornalistas chamavam-me “Mirage”, Fórmula I, Expresso do Norte [risos]. Não tinha ABS. Quantas vezes choquei com fotógrafos, e até polícias… não era fácil controlar a bola com tanta velocidade.

Retomando o fio à meada. O Seninho já não estava no estágio do FC Porto na serra da Estrela.
Não me passava pela cabeça sair do FC Porto, ainda por cima daquela maneira. Um belo dia, estava a almoçar com o Lemos…

Aquele dos quatro golos ao Benfica?
Dos quatro ao Benfica nas Antas e de outros dois na Luz, na mesma época 1970-71.

Muito bem.
Estava com ele quando o FC Porto liga para o restaurante onde nós estávamos. Era um restaurante conhecido e o Lemos almoçava lá sempre. Ora bem, o FC Porto queria o regresso do Lemos, mas ele disse que não, que já se tinha comprometido com o presidente Violas [esse mesmo, o Comendador Violas, nome do estádio do Espinho]. Resignado, o FC Porto também pergunta por mim, o que é feito, que estou desaparecido, que ligam para casa e ninguém atende. O Lemos então disse-lhes que eu estava ali com ele. O FC Porto pede-lhe que me passe o telefone e falo com o FC Porto. Combinamos uma reunião com o presidente Américo de Sá. Apresentei-me no dia seguinte e disse-lhe quanto queria ganhar por mês. Ele aceitou os meus números e o negócio fez-se em pouquíssimo tempo.

Então pôde regressar ao estágio?
Sim, eu e o Tibi, o guarda-redes. Fomos num boca de sapo até à serra da Estrela. Uma viagem interminável. Só havia uma via para cada lado e demorámos para aí umas oito horas.

E o Seninho entrou logo a titular?
Não, não foi assim. O Tibi sim, mas eu demorei duas jornadas, parece-me. O Stankovic metia-me a suplente. Um dia, no balneário e antes de um jogo com o Belenenses nas Antas, diz-me com um sorriso nos lábios que vou ser defesa-central. Claro que era brincadeira, mas foi esse o jogo que mudou a minha época, porque saltei do banco de suplentes com 0-0 e marquei os dois primeiros golos do jogo. Ficou 3-1 e fui o herói. A partir daí, titularíssimo.

Até 1978, ano em que saiu para o Cosmos?
Sim, quase sempre. Nesse ano fomos campeões nacionais na última jornada, frente ao Braga. Foi um S. João antecipado. E recebi uma proposta do Sporting.

A sério? Mas já estava tudo tratado com o Cosmos?
Sim, só fui a Lisboa ouvir a proposta deles.

E que tal?
Jantámos, eu e o presidente João Rocha, no Hotel Ritz, com piano e tudo. Ele foi bastante correto e disse-me que aquele valor era incomportável para o Sporting. Ou para qualquer clube português, digo-lhe eu agora. Vinte mil contos era muito.

E vai então para o Cosmos, essa sim, uma equipa galáctica.
Quando cheguei, em 1978, éramos os verdadeiros galácticos. Vi o estádio dos New York Giants, com 76 mil pessoas, sempre esgotado. Já havia ecrãs gigantes, cheerleaders, animações antes do jogo e ao intervalo, até estádios com relva artificial. A apresentação dos jogadores era uma coisa de cinema. O Pelé, por exemplo, chegava de helicóptero. Íamos de costa a costa em avião particular! Uma vez estagiámos oito dias em Washington. Fomos nós e pudemos levar as nossas mulheres, que ficaram num outro hotel, com um guia turístico para a cidade. Enquanto treinávamos e jogávamos, elas iam conhecer tudo, a Casa Branca, o Capitólio, etc.

Quando chegou a Nova Iorque começou logo a jogar?
Antes de assinar pelo Cosmos fiz um jogo particular e notaram a minha velocidade. Perguntaram-me então porque não tinha ido para o atletismo. Mas eu não sou nenhum Carl Lewis [risos]. Eles, americanos, são assim. Aproveitam tudo. Vêem uma pedra por polir e querem trabalhá-la. Outra pergunta curiosa que me fizeram: então você é angolano, vai para Portugal e depois volta ao seu país para combater? Foi defender que país? Lá lhes contei a história da colonização, mas a partir daí não houve mais perguntas políticas, só desportivas.

E a equipa?
Além do Pelé, do Beckenbauer e do Neeskens, que eram os mais conhecidos, o jugoslavo, o Bogicevic, que já treinou o Belenenses, o italiano Chinaglia, o iraniano Eskandarian, o turco Yasin, o brasileiro Carlos Alberto, capitão da Selecção do Brasil de 1970. Ao todo, nove nacionalidades. Mas aquilo era mais que uma equipa. Era uma instituição.

Como?
Mal cheguei inscrevi-me na Berlitz School, para ter aulas individuais de inglês. Duas horas três vezes por semana. Jogávamos futebol, mas também participávamos em actividades culturais e íamos para todo o lado, dar apoio a crianças, adultos, deficientes. Acções de solidariedade.

Iam sozinhos?
Sim.

Onde é que o Seninho vivia?
No primeiro ano vivi em Manhattan, perto da Broadway. Depois arranjei casa perto do estádio dos Giants, onde jogávamos, no mesmo empreendimento em que os meus companheiros de equipa paraguaios Cabanas e Romerito e os holandeses Rijsbergen e Neeskens viviam.

E o Pelé e o Beckenbauer?
Moravam perto de Central Park, mas as vidas deles eram diferentes das nossas. Afinal um era O Pelé e o outro O Beckenbauer. Jogávamos juntos, treinávamo-nos juntos e por vezes encontrávamo-nos em eventos sociais, como no lançamento do “Rocky 2”. Estava lá toda a equipa e falámos todos com o Sylvester Stallone.

One Comment
  1. Maria João Lourenço

    um jogador (re)lembrado na edição de ontem da grandiosa enciclopédia do ludopédio, fantástico programa... e uma coincidência dos diabos!

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