Um zero à esquerda? Nunca, impossível
Sabem aqueles momentos de galhofa generalizada em casa de amigos rapidamente transformados em silêncio quando um deles se lembra de jogar ao Trivial Pursuit. Porquê? Para quê? Não se entende, de facto, daí que seja costume alguém insurgir-se com uma testa franzina ou um cerrar os olhos em tom de desaprovação mas, atente bem nisto, há sempre um braço levantado. Geralmente é o esquerdo, um canhoto ansioso por explicar a superioridade cultural em relação aos destros.
Joga mazé os dados. Um, dois, três, quatro, cinco, história: como se chama o primeiro homem a aterrar na Lua? Neil Armstrong. Quem disse “só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. E do Universo não tenho ainda a certeza”? Albert Einstein.
Um, dois, três, música: de quem é a música que ajuda a afundar o Titanic? Celine Dion. Quem é o único Sir do quarteto dos Beatles? Paul McCartney. Quem é a atracção principal do festival Woodstock? Jimi Hendrix.
Um, desporto: quem é o tenista mais enervante de todos os tempos, autor da frase “não nego que durante seis anos tomei uma droga utilizada para cavalos, embora eu a considere muito forte até para os cavalos”? John McEnroe. Quem é o desportista mais talentoso e gordo de sempre? Babe Ruth. A mão de Deus é de…? Diego Armando Maradona. Quem é calado e um poeta? Pelé
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, arte: quem é o pintor de Mona Lisa e A Última Ceia, homem de vastos conhecimentos, entre os quais o matrimónio “o casamento é como enfiar a mão num saco de serpentes na esperança de apanhar uma enguia”? Leonardo da Vinci. Quem é o arquitecto da Basílica de São Pedro e o pintor do tecto da Capela Sistina? Miguel Ângelo.
Um, dois, três, quatro, política: quem é o primeiro-ministro que fala pela primeira vez em Cortina de Ferro para ilustrar a separação da Europa comunista e ocidental? Winston Churchill. De quem eram as tropas francesas derrotadas nas Linhas de Torres? Napoleão Bonaparte.
Um, dois, cinema: quem diz “are you talkin’ to me” sem parar? Robert de Niro. Quem é o actor mais indecifrável de sempre? Keanu Reeves. Está certo, certíssimo, mas li mal a pergunta, releio-a: quem é o actor peludo mais indecifrável de sempre? Chewbacca.
Acabem com isso, por favor. Que xaropada mais cansativa. É só canhotos e mais canhotos. Só falta juntar-lhes a mão esquerda de Bart Simpson a escrever repetidamente no quadro não jogo mais isto, não jogo mais isto, não jogo mais isto, não jogo mais isto, não jogo mais isto, não jogo mais isto, não jogo mais isto, não jogo mais isto, não jogo mais isto.
Tem de ser, senão ainda sai outra pergunta sobre canhotos, uma assim “como se chama o presidente dos EUA a quem lhe roubam o relógio em plena visita à Albânia no Verão de 2007?” Tsss tsss, vá lá. George W. Bush, em Fushe Kruje, a 25 quilómetros da capital albanesa Tirana. A sua mão esquerda é sacudida por dezenas de albaneses. Num momento é visível, no outro desaparece. A mão primeiro, o relógio depois. Há uma série de teorias da conspiração (e aspiração) mas a que mais vinga é a de que nenhum albanês é malandro ao ponto de tirar o Timex do pulso esquerdo de Bush. Este é que desconfiado com tanto calor humano, guarda o dito cujo no bolso do casaco para evitar problemas de maior. À conta desse gesto, não se livra de uma polémica incontornável e, anos depois, é quase vítima com um arremesso de um sapato por parte da mão direita de um iraniano. Uff, que alívio, um destro. Mas se o sapato fosse atirado com a esquerda (Barack Obama, por exemplo), outro galo cantaria, não?
Dez por cento da população mundial é esquerdina, o mesmo é dizer que dez por cento da população mundial sofre com um mundo desenhado para destros. Desde o desenho de abre-latas à colocação do cartão multibanco, tudo contra os canhotos. Ou não fossem eles vistos como diferentes dos demais e obrigados pelos pais e professores a escrever com a mão direita para corrigir esse “defeito”. Tudo contra ele. Por exemplo, têm uma maior probabilidade de contrair determinadas doenças devido a uma exposição a níveis anormalmente elevados de testosterona no ventre materno, que se crê poder influir na eleição da mão dominante. Por sorte, os esquerdinos são conhecidos por terem melhor memória que os destros, certa vantagem nos desportos como o boxe e o ténis e uma maior capacidade visual-espacial.
Com vantagens e inconvenientes, depois de séculos e séculos de vergonha, ser esquerdino é mais do que uma normalidade, é um orgulho. Parabéns a todos, é um prazer dar a conhecer os seus problemas em primeira mão. Qual? A esquerda, ora essa. (e o pé esquerdo também, como o dos Monty Python)
