Viggo Mortensen. Más que un cuervo
O campeão mais estranho de todos os tempos é o Plaza Amador do Panamá com mais derrotas (15) que vitórias (13) em 38 jogos na época 2001-02. Na Suécia, o AIK Estocolmo sagra-se campeão em 1998 como a equipa menos goleadora da liga (25 golos em 26 jornadas). Em Marrocos, o MAS Fés é campeão em 1985 com apenas oito pontos de diferença sobre o último. Isto é incrível? Não, não e não.
O incrível é o que se passa no bairro de Boedo, em Buenos Aires, onde joga o San Lorenzo. Acabam-se as férias e reina a boa disposição entre os jogadores durante os testes médicos. Romagnoli, o Pipi do Sporting, é um dos presentes. Veste a camisola 10 mas não é a figura. Nem ele nem nenhum outro do plantel. A estrela da companhia é de Nova Iorque mas tem sangue argentino. É actor de Hollywood mas quer acabar a carreira a filmar na Argentina. É um dos actores de cinema mais emblemáticos mas sonha em fazer-se um homem do campo. Onde? Na Argentina, por supuesto!
Mas quem é ele? Isso agora… O Aragorn do Senhor dos Anéis (2001, 2002 e 2003), o Nikolai de Promessas Perigosas (2007), o Tom Stall e o Joey Cusack de Uma História de Violência (2005), o The Man de A Estrada (2009). Ou simplesmente, Viggo Mortensen. Só o nome já dá para criar um certo impacto. Vê-lo aqui dá outro ar. Dos buenos, claro. Há posters dele espalhados pela sede do San Lorenzo. Cartazes desses filmes e de outros, como o primeiro de todos, a Testemunha (1985), em que Viggo entra meio incógnito em duas cenas ao lado de Harrison Ford e Kelly McGillis. E até há um cartaz XXL em que Mortensen está vestido com uma gravata azul e vermelha (cores do San Lorenzo), com meias azuis e vermelhas (los colores di San Lorenzo) e com o pin do San Lorenzo na lapela do casaco.
“Sabes onde é que essa fotografia foi tirada?” pergunta-me o que julgo ser o porteiro da sede. Ni idea. “No teatro k****”. Não percebo nada. Onde? Ele tenta mais uma vez mas continuo sem o entender. Pede uma caneta ao ajudante e escreve Kodak. Depois abre os braços e diz Hollywood. Faço duas caretas. Primeiro de espanto “Ahhhh”, a seguir incrédulo “nooooo”. Aquele que ainda julgo ser o porteiro agarra-nos no braço e mete-nos dentro da sua casa. Ok, talvez seja mesmo o porteiro. Entretanto, os jogadores estão a sair pela porta principal e não me importaria nada de falar com Romagnoli (ele talvez sim, talvez se importasse). Mas o senhor, sim o porteiro, dos seus cinquenta e tal anos, esse não desiste, continua de braço dado comigo como se quisesse mostrar a Arca de Noé.
Abre a tampa do telemóvel e mostra-me imagens e até vídeos de Viggo Mortensen naquele sítio, no estádio (Nuevo Gasómetro), aos saltos como outro hincha, a beber mate, a festejar um golo, com os dentes cerrados numa qualquer jogada de perigo, com o cachecol do San Lorenzo, com a bandeira do San Lorenzo e vestido à San Lorenzo na tal festa dos Óscares em 2009. “Foi depois dos prémios, naquela festa que organizam para todos, vencedores, vencidos e convidados”, argumenta. Pronto, já entendi: este senhor é o porteiro da sede do San Lorenzo. Ah sim, é verdade, e o Viggo Mortensen é do San Lorenzo. E o que é o San Lorenzo? É a terceira potência do futebol argentino, em massa popular e em títulos, atrás de Boca Juniors e River Plate.
Nos anos 40, a equipa conhecida como os Cuervos recebe um convite de clubes portugueses e espanhóis para fazer um tour na Península Ibérica em Dezembro, perto do Natal. Os argentinos saem daqui como campeões argentinos e chegam laureados como campeões do mundo. Bem, nem tanto… Os sucessivos recitais de bola a Sporting, Benfica, Barcelona e Real Madrid garantem-lhes o título de melhor equipa do mundo. Quem os vê, diz que monopolizam a bola como ninguém, que a trocam entre si da defesa até ao ataque e depois marcam. O porteiro não é desses, nunca os viu em acção, Viggo Mortensen também não. Mas os dois são do San Lorenzo. E o porteiro – vamos chamar-lhe Kodak visto que perguntei o nome e não entendi a resposta embora tenha aberto a boca e abanado afirmativamente a cabeça como se se tivesse feito luz – conta-me a história toda de Viggo.
“Ele viveu acá dos três aos 12 anos. O pai dele cuidava de algumas fazendas lá para os lados de Chaco. Depois mudou-se para Nova Iorque mas continua a vir cá muitas vezes ao ano. Quando pode, julgo eu. Um dia, disse-me que queria viver no campo, na Argentina, depois dos filmes, depois da aventura nos ‘Etados Unidos’ [os argentinos dizem assim, economizam letras]. Ele gosta do campo. ‘Mira’, até comprou três cavalos do Senhor dos Anéis. Ele gosta mesmo do campo. Em 2005, deu-me um autógrafo.” Tira a carteira do bolso direito e toma lá um papel plastificado com uma dedicatória imperceptível e a assinatura do actor, essa sim, decifrável. “Ele fala baixo, sabias? Baixo, mas baixo. Eu tenho de me encostar a ele para ouvi-lo. E não te olha nos olhos, isso não. Mas responde-te a tudo, de forma directa, sem rodeios. E em espanhol.” G’anda filme. O Kodak está felicíssimo. Vê-se no brilho dos seus olhos.
“Nunca mais me esqueço daquele 13 de Novembro de 2005. Veio promover uma ‘peli’ [Uma História de Violência, de David Cronenberg]. Era para aterrar em Buenos Aires na segunda-feira mas pediu que o seu voo fosse antecipado para domingo, 13. Era dia de jogo aqui no Gasómetro, com o Tiro Federal, último classificado. Ele chegou de manhãzinha, deve ter descansado no hotel e à tarde veio ver o jogo com la gente. Ganhámos 5-3, com dois golos do Lavezzi, ‘ese loco que juega en la seleción’. Sabes o que ele disse no final?”
Estou em crer que não quero adivinhar o formato da resposta: vídeo, sms, sinais de fumo? Kodak aponta-me para a parede e lá está, de facto, Viggo a comentar a partida. “Nós jogámos como uma equipa. Sofremos e desfrutámos juntos. Prefiro ver uma equipa que trabalha como uma equipa do que ver uma equipa em que se destaca um jogador.” É de homem. Kodak não pára. “Os jogadores entregaram-lhe uma camisola autografada e ele acabou o dia a jantar na Recoleta. E sabes que mais? Ele queria ver o jogo dessa quinta-feira, com o River. El clásico. Mas não podia, já não estava cá. Seguia-se o México, outra vez para promover o filme. Para os adeptos do San Lorenzo, o que interessa é o que ele disse ao seu agente de imprensa: ‘e se eu interromper a conferência de imprensa para ver o jogo?’. Claro que foi meio a brincar mas isso significou tanto para nosotros. Isso e os donativos que ele nos dá de vez em quando. Mas não digas a ninguém, é segredo.” Okay.
Passam-se uns dias, umas semanas. E continuamos em Buenos Aires. Cidade curiosa esta. Quase não se vêem pessoas a fumar na rua. Daí que não abundem os sinais de proibição em restaurantes, bares ou cafés. Há fumo, sim, mas não vem do cigarro. Reparamos na cuia (espécie de copo), com uma bomba (espécie de palhinha). Lá dentro, uma nuvem de fumo (lá está, nós avisámos). É água a ferver com erva. É o mate, a bebida oficial da Argentina.
Nas ruas mais movimentadas da capital, é raro ver alguém com mate na mão, porque há mais turistas que argentinos (até há mais chineses que turistas). Se formos para outras paragens, mais recatadas, é comum observar-se uma família inteira de quatro/cinco pessoas, dos mais velhos aos mais novos, a partilhar uma cuia. Parados ou em andamento. E sempre acompanhados de um termo para manter a água quente.
País estranho este, a Argentina. Longe de ser uma força no mundo do cinema, como Hollywood (EUA), Bollywood (Índia) ou Nollywood (Nigéria), os três grandes da indústria, o entusiasmo das pessoas pelas estreias dos filmes é assustadoramente mágico. Tomemos como exemplo o caso de “Harry Potter”. Num sábado, antes da estreia, cinco mil mágicos, de varinha mágica em punho e de capa negra às costas, saem à rua para uma manifestação pacífica. Domingo, segunda, terça, quarta, quinta e chega-se à sexta-feira. O dia mágico. Qualquer coisa como 548.942 espectadores invadem as salas para o novo “Harry Potter”, o último da saga. Não só é a melhor receita do ano (destrona “Piratas das Caraíbas”, com 501 663) como de sempre (à frente de “Os Simpsons”, com 531 024).
Continente enorme este, a América. Há o Norte, o Centro e o Sul. Ao todo, são 35 países, que ocupam 8,3% da superfície total do planeta e 13,5% da população mundial. De Los Angeles a Buenos Aires, por exemplo, é quase o mesmo tempo de avião que de Lisboa a Los Angeles. E porquê de Los Angeles para Buenos Aires? Porque é a viagem mais comum do Aragorn do Senhor dos Anéis, o Nikolai de Promessas Perigosas, o Tom Stall e o Joey Cusack de Uma História de Violência, o The Man de A Estrada. Ou simplesmente, Viggo Mortensen. Outra vez ele, porquê? Porque, coincidência das coincidências, o actor está cá, em Buenos Aires, a filmar Todos Tenemos un Plan, a contracenar com Soledad Villamil, actriz de O Segredo dos Seus Olhos, com realização da argentina Ana Piterbarg, numa produção da Haddock Films.
Estamos em Buenos Aires e Viggo Mortensen também. Curioso. E essa curiosidade leva-nos a um sítio estranho, numa caminhada enorme. O primeiro passo é telefonar para a Haddock Films. Qual não é o nosso espanto quando nos atendem ao primeiro toque e nos dão o contacto da Raquel, a senhora que trata de reencaminhar a imprensa para o set do filme. Qual não é o nosso espanto (desculpem mas estamos habituados aos assessores de imprensa do futebol que nos apresentam obstáculos a cada telefonema) quando a Raquel nos atende à primeira. Ouvimos uma nega, porque “só há quatro jornais, dois nacionais e outros dois internacionais, com acesso ao set até ao fim das filmagens”. E uma sugestão. “Mas porque é que não vai lá para conhecer o local? É uma viagem inspiradora!” Se a Raquel diz…
E o set é onde? Dique Luján, uma minúscula vila argentina 50 quilómetros a norte de Buenos Aires. Mas são 50 km trabalhados. Por mais de duas horas, estamos sentados num táxi. O senhor, com um galhardete enorme do San Lorenzo no retrovisor, fala-nos da recém-descida do histórico River Plate à 2.ª divisão nacional com um entusiasmo desmedido. Às vezes, larga o volante e gesticula energeticamente. Uma mão lá fora, ao sabor do vento, e a outra cá dentro, perto da nossa cara. Até que passamos pelo “caminho da via morta”, uma estrada estreita a perder de vista, com árvores de um lado e do outro a tocarem-se lá no alto e a taparem a entrada dos raios solares.
“Antes, isto aqui”, explica-nos o taxista, “não era uma estrada, era uma linha férrea, que ligava Dique Luján a Buenos Aires”. De repente, paramos. Já chegámos? Não, ainda não. Agora temos de apanhar um bote rumo à ilha. Dique Luján está mesmo diante dos nossos olhos e, ao mesmo tempo, tão longe. Há uma ponte levadiça mas o taxista não se quer aventurar por aí, diz que espera por nós naquele lado da margem o tempo que for preciso. A viagem de bote é rápida e chegámos à ilha onde se está a rodar o novo filme de Viggo Mortensen. À entrada da ilha, a tabuleta com o número de habitantes: 1512. À medida que desbravamos caminho, as pessoas perseguem-nos com o olhar. É, estamos mesmo numa vila. Até os sons são diferentes. Um engraxador trabalha freneticamente com as duas mãos e o som do pano a puxar o lustro ao sapato parece o do R2 da “Guerra das Estrelas”. Aliás, o cenário não desdenha.
Paramos à frente do set. Há alguma agitação mas só se vêem sombras. Que se transformam em astronautas. Sim, só vemos fatos brancos gigantes de um lado para o outro. Cena 1. Cena 2. Cena 3. Há algo que não está a sair bem. É aí que Viggo Mortensen sai do set! A beber mate! Com uma cuia do San Lorenzo! Desculpem o excesso de pontos de exclamação mas tudo isto é extraordinário. Pintada de azul e vermelho, com o símbolo do clube onde joga Romagnoli e onde Acosta acabara a carreira. Viggo continua, pelos vistos, agarrado às origens. Ele que vive na Argentina entre os três e os 11 anos, antes de ir para a Dinamarca. Pela conversa do actor com alguém do staff, chegamos à conclusão de um aspecto importante: “aquilo” não são fatos de astronauta. Viggo Mortensen está “mascarado” de apicultor.
“Elas [abelhas?] não saem. Está muito frio. Eles não vão sair”, diz com o ar mais calmo deste mundo. Senta-se num tronco de árvore e bebe mais mate. Sente-se vigiado. Olha para nós e abana a cabeça timidamente. Queremos meter conversa mas não sabemos como. Se fosse nos States, era fácil. What about those Yankees? (versão nova-iorquina), ou Dodgers (Los Angeles) ou Cubs (Chicago). É o que aprendemos com os filmes e séries. E lembramo-nos de… ‘y que pasa con San Lorenzo?” Huuum, estamos tramados. Ele continua a beber o mate, olha-nos de lado e pergunta-nos em castelhano. “Eres de San Lorenzo?” Não, respondemos atabalhoadamente em português. À nossa frente está o Aragorn. Impõe respeito. “Tu és argentino?” Não, português. Pausa para silêncio (da nossa parte) e lábios em forma de peixe (para Viggo, a sugar mate). “Aaaah sim” e ri-se, mais descontraído, “são aqueles que não conseguiram ficar à nossa frente [da Dinamarca] na fase de apuramento para o Mundial-2010.” Sim, é verdade, mas passámos aos oitavos-de-final do Mundial, num grupo com o Brasil, e vocês [eliminados na fase de grupos por essa “potência” futebolística chamada Japão]?
Olhos semicerrados em tom de desafio. “És jornalista?” Yup, desportivo. “Hãã, deportes? E o River Plate que desceu de divisão, já viste?” Vira o disco e toma o mesmo. Futebol. Se é para isso, fico a falar com o taxista… “Viste bem os incidentes no estádio e nas ruas no dia em que eles desceram de divisão? Que confusão. Pegaram fogo a caixotes do lixo! Partiram montras! Partiram carros! Que confusão. Não se parece nada com a Argentina, sabes? Há dois meses, fui ver o San Lorenzo ao campo do Tigre. Deram-me bilhete para a tribuna VIP mas quis ir para o meio dos adeptos. Foram 90 minutos sensacionais, se esquecermos a derrota [1-0]. Tudo gente boa. Tiraram-me fotografias, dei autógrafos, todo bien. Bem, vou voltar lá para dentro. Hasta.” Viggo Mortensen, um campeão de corpo e alma.