Uma mão cheia de mano de Díos

Kavorka Mais 10/29/2020
Tovar FC

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Uma mão cheia de mano de Díos

Maradona é levado da breca. A imprevisibilidade é uma constante, razão pela qual anda sempre de mãos dadas com a polémica. E é neste pé que estamos. Ou
melhor, na mão. A esquerda. Desengana-se quem pensa que estamos a falar do histórico golo no Argentina-Inglaterra do Mundial-86, no México.

1. Cebollitas

Em discurso directo, é sempre melhor. ‘Lembro-me do meu primeiro golo com a mão, ainda jovem, pelos Cebollitas, no Parque Saavedra. Os jogadores adversários viram e saltaram para cima do árbitro. E nada, o árbitro validou o golo. Montou-se uma confusão bárbara. É o que te digo, um golo com a mão é irregular e não está bem, mas a mão salta-nos como se não fizéssemos por isso. É o instinto, sabes? Quando entro na árbitro, penso no golo em primeiro lugar, no golo em segundo lugar e no golo em terceiro lugar.’

2. Racing vs Argentinos Juniors

É o primeiro lance irregular, a primeira mão. Que não ainda a de Deus. Acaba 2:2 para o campeonato argentino 1980. Uns dias depois, Maradona dá uma entrevista à revista ‘El Gráfico’ e esclarece a situação. ‘Já sei que não está bem fazer um golo assim, mas uma coisa é dizer aqui a frio, a beber um café, e outra, muy distinta, é dentro de campo. Não posso assegurar que não voltarei a fazer, porque nunca se sabe no calor do momento. No afã de marcar golo, a mão está solta e tudo pode acontecer. Não está bem, eu sei, mas também não está bem quando me tocam no pé de apoio e o árbitro nada assinala.’

3. Ascoli vs Nápoles

O segundo golo com a mão acontece a 13 Maio 1985, num Udinese-Nápoles (2:2), para a 29.ª e penúltima jornada da liga italiana. Maradona salta e toca a bola com a mão para a baliza. É golo do Nápoles? Sim, o 2:2 aos 88 minutos, porque o árbitro (Giancarlo Pirandola) nada assinalou, o que motiva a ira de Zico, capitão da Udinese, e a fazer o último jogo em Udine antes de embarcar novamente para o Rio de Janeiro, rumo ao Flamengo.

Com a bola no meio-campo, à espera do reinício do jogo, Zico confronta Maradona: “Se és um homem honesto, diz ao árbitro que marcaste com a mão.” O
argentino responde com a irreverência de sempre: “Sou Diego Armando Maradona, desonesto de profissão.” O brasileiro ouve e cala, não por muito
tempo.

A caminho do balneário, já consumado o empate a dois golos, Zico barafusta com tudo e todos, incluindo o juiz da partida. “Isto tudo é uma vergonha. Trabalhámos a semana toda para proporcionar uma tarde gloriosa aos nossos
adeptos e depois acontece isto. O árbitro, pura e simplesmente, não viu aquilo que 55 mil pessoas nas bancadas viram: o golo com a mão de Maradona.” Estas
declarações azedas provocam uma reacção da federação italiana de futebol, que
suspende Zico por seis jogos. O número 10 da Udinese – que chegara a Itália na
época anterior (1983/84) e marcara 19 golos – já não actua na última jornada,
em Cremona, e regressa ao Brasil.

Só anos mais tarde é que Zico fala novamente do assunto. “Essa exaltação da
minha parte tem um contexto próprio. Era o meu último jogo na Udinese e havia
um ambiente especial. O golo com a mão do Maradona fez-me explodir mas nunca o critiquei por isso, embora tenha sido um estágio para aquele famoso golo com a Inglaterra, um ano depois, no Mundial do México.”

E não é que o profissional desonesto dá a cara pela honestidade? “Lembro-
-me do Zico ter ficado espantado com o meu golo com a mão”, garante Maradona “mas nunca me criticou; ele até encolheu os ombros como que a dar-me razão
por aproveitar a desatenção do árbitro.”

4. Argentina vs Inglaterra

Segue-se a mais famosa, a do Mundial-86, com a Inglaterra, nos quartos-de-final. Valdano recebe mal a bola e é Fenwick quem a atrasa atabalhoadamente para Shilton. O guarda-redes faz uso da sua envergadura (1,85 m) e sai-se à bola com o punho direito. Maradona, bem mais pequeno (1,65 m), atira-se com a mão esquerda. E é golo. “Durante anos, anos e anos, não consegui rever esse jogo”, garante Shilton. “Por causa da mão de Deus, desse golo irregular que o árbitro não viu, nem o fiscal-de-linha.”

O árbitro em causa é o tunisino Ali Bennaceur. “A culpa desse golo é de Dontchev. Quando o Maradona marcou, comecei a recuar para o meio-campo á espera do sinal do meu fiscal-de-linha búlgaro e ele nada de olhar para mim, limitou-se a correr para o meio-campo. Entendi que não houve qualquer irregularidade e deixei seguir.” O búlgaro encaixa mal a crítica e contra-ataca. “O Bennaceur não estava preparado para um jogo desse calibre. Afinal, é o que acontece quando se costuma apitar jogos entre camelos no deserto.” E o terceiro elemento? È o costa-riquenho Berny Ulloa, isento de qualquer culpa pelo simples facto de ter acompanhado do ataque dos ingleses durante a segunda parte.

“A única coisa que posso dizer é que o Bennaceur estava bastante desapontado quando viu as imagens pela televisão no hotel, nessa noite.” Bom, tanta conversa sobre um lance de 1985 e outro em 1986. Para quê? A situação de 1985 ajuda a explicar a de 1986. E a de 1986 é hoje tema de conversa em todo o mundo pelo pedido de desculpas público de Maradona ao árbitro Bennaceur, durante a rodagem de um anúncio publicitário da Coca-Cola em Tunis (Tunísia).

“Peço desculpa pelo golo da mão de Deus.” Na sua página de facebook, o argentino mostra fotos actuais d’Ele com Bennaceur. “Foi um fim-de-semana bem agradável na Tunísia. Encontrei-me com Bennaceur, ofereci-lhe uma camisola da Argentina e ele pediu-me para autografar a foto emoldurada desse golo da mão de Deus que ele tem lá em casa. Escrevi isto: ‘Para Ali, meu amigo eterno’.” Assunto resolvido? Sim, para Bennaceur. Só falta agora convencer Shilton a perdoá-lo.

Errrrrr, not a chance. Shilton continua piurso. Quem se der ao trabalho de ir aos arquivos da federação inglesa procurar fichas entre 1966 e 1997, vai reparar num pormenor entediante, num nome comum: Peter Shilton. Ninguém tem mais jogos que ele. Quer seja na liga inglesa (1005) ou na selecção (125). Shilton para aqui, Shilton para ali. Shilton, Shilton e mais Shilton. Joga três Mundiais e, atenção, só começou a ir aos 32 anos de idade, no Espanha-82. Antes, ganha duas Taças dos Campeões pelo clube mais improvável de todos, o Nottingham Forest.

Jogaste em onze clubes mais a selecção! Qual o segredo?
A confiança dos treinadores. ‘I mean’, ficar tanto tempo na baliza é obra. Minha, dos defesas à minha frente e dos treinadores.Tive alguns dias maus e eles continuavam a apostar em mim .Tive sorte. E bons professores.

Quem?
Alf Ramsey, por exemplo. Foi o maior. Campeão do mundo em 1966. E ainda Brian Clough.

Clough foi o mentor do grande Nottingham Forest, right?
Sem dúvida. ‘I mean’, o que ele fez e o que eu vivi no Nottingham Forest nem sequer dá para um guião de cinema. Ninguém tem assim tanta imaginação. Em 1977, ficámos em 3.º lugar na 2.ª divisão e subimos à 1.ª, onde fomos campeões
no ano seguinte. Qualificámo-nos para a Taça dos Campeões e levantámo-la em 1979. Em 1980 voltámos a ir à final e ganhámos novamente. ‘I mean’… Ah, e ainda falta a conquista da Supertaça Europeia, ganha ao Barcelona. Que aventura! Tudo Brian Clough.

E…
Também há Bobby Robson. Afinal, confiou-me a baliza da selecção por oito anos ininterruptos.

Entre os Mundiais 1986 e 1990.
Exacto.

1986 é o ano da mão de Deus.
Good lord. Hey, fiz grandes jogos. Porque é que toda a gente tem de se lembrar da mão de Deus? Come on. Mão de Deus, Maradona, noooooooo. Next question.

Ok, ok, recuemos um pouco. A estreia desse Mundial foi com Portugal. Um a zero, golo de Carlos Manuel.
Good lord. Pleaseeeee. Vocês foram lá à frente uma vez e marcaram. Carlos Manuel, nooooooo. Next question.

5. Argentina vs URSS

Esqueça, a Argentina de 1990 nada tem a ver com a de 1986. O cérebro é o mesmo (Maradona), o seleccionador idem (Bilardo), mas o fio de jogo já não tem aquela envolvência. Para cúmulo, os argentinos jogam sempre fora de casa, assobiadíssimos pelos italianos. “Culpa” de Maradona, campeão pelo Nápoles
(Sul), e aglutinador de ódios insuportáveis pelos adeptos no Norte e Centro do
país. A espantosa derrota vs. Camarões em Milão é disso um exemplo, tal
como a vitória frente ao Brasil, em Turim, para os oitavos-de-final.

Pelo meio, o 2:0 à URSS. O jogo é em Nápoles, para a segunda jornada da fase de grupos. Aos 10 minutos, Olarticoechea lesiona Pumpido. Nem mais, choque de argentinos. Casual, óbvio. Pumpido, frangueiro no 1:0 de Omam-Biyik no jogo anterior, o tal vs Camarões, sai de cena. Entra um tal Goycoechea. Que defenderá nada mais nada menos que quatro penáltis até ao final desse Mundial. Um craque no desempate, um génio na arte de se atirar para o lado certo.

Goycoechea entra e a URSS começa a pressionar. Aos 12′, é canto. A bola voa para a área e Zygmatovich cabeceia para o golo. Maradona impede-o com a mão. Agora é a direita. O seleccionador brasileiro Lazaroni vê e revê o lance. Ri e volta a rir. ‘É a prova de que Maradona é ambidestro. Marca golos com a mão esquerda e evita-os com a direita’.

Nos balneários do San Paolo, a figura de Maradona é naturalmente a mais procurada. O 10 encara os jornalistas com naturalidade. ‘Estiquei o braço, foi instinto (…) Não devemos ir por esse caminho, os árbitros enganam-se, tal como os jogadores e os treinadores.’

Errrrrrr, Lobanovsky não é bem dessa opinião. E transmite-a com aquele ar esfíngico. ‘Este árbitro não pode apitar mais. Não digo este Mundial, vou mais longe e digo que não deve apitar para sempre.’ Exagero? Nem por sombras. O árbitro é um sueco chamado Fredriksson. Que está mesmo atrás de Maradona. Vê o lance com clareza. E nunca esquecer este pormenor, Fredriksson é o árbitro (vejam lá bem) do Bélgica-URSS de 1986, no México, quando a Bélgica marca dois golos em fora-de-jogo. Acaba 4:3, após prolongamento. De nada vale o hat-trick de Belanov, a Bélgica segue em frente. Num dos golos em fora-de-jogo, o fiscal-de-linha espanhol Sánchez Arminio levanta a bandeirola. Infracção, jogador adiantado em relação ao último defesa. Fredriksson aponta para o meio-campo. Sánchez Arminio recolhe a bandeirola e também corre.

Quatro anos depois, a FIFA tem a indecência de nomear Fredriksson para outro jogo da URSS (e de Lobanovksy). É duro.

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