Jaime Pacheco. ‘Se o sacana do Álvaro tivesse cortado o sexto dedo, aquele golo da Polónia era fora-de-jogo’

Mais You Talkin' To Me? 11/27/2020
Tovar FC

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Jaime Pacheco. ‘Se o sacana do Álvaro tivesse cortado o sexto dedo, aquele golo da Polónia era fora-de-jogo’

Queres comer o quê? A pergunta por whatsapp de Jaime Pacheco traz água no bico? Traz, sim senhor. É um peixe, ò faz favor. Acabado de aterrar na Campanhã, o carro preto de Jaime está à porta da estação, à nossa espera. Só nos cruzámos uma única vez, em Madrid, antes do Real-Maiorca para a Supertaça espanhola em Agosto 2003. De lá para cá, 0-0. Agora é o reencontro, no Porto. Sem mais demoras, aqui vamos nós para o Arquinho do Castelo. Ainda nem andámos 100 metros e já começa a entrevista no tom mais descontraído possível. Agarrem-se bem, o Jaime Pacheco é homem de histórias infinitas, gargalhadas mil e humor à desgarrada. Se todos os almoços fossem assim, o jantar seria simplesmente inútil.

Olha olha, um Eusébio dos Frangos aqui à entrada do Porto.
Ééééééé. Sabes uma coisa? O Eusébio sempre foi respeitado no Porto. Nunca ouvi ninguém dizer mal dele, nem sequer uma palavra. Um respeito imenso pelo jogador e também pela pessoa. Engraçado, ele nunca perdeu essa aura. E ainda bem. Merece o respeito de todos.

O Jaime leva-me onde?
Vamos ali a Leça, mais tranquilo para estacionar que Matosinhos.

Aprovado, o Domingos é de lá e já me falou bem do peixe.
Quem, o morre ao sol? O morre ao sol é um espetáculo. Menino bom, sossegado. Gosto muito dele. Como era solteiro quando jogava no Porto, dava-me muito com os mais miúdos. Os casados tinham os seus afazeres domésticos depois do treino e eu ocupava-me da malta nova. Tanto na parte final do treino, como remates à baliza, ou depois. Então, eu e o Domingos tínhamos um esquema: ia à baliza e ele fazia cinco remates, depois ia ele à baliza e fazia-lhe cinco remates. Quem perdesse, pagava o almoço. Pois bem, ganhava-lhe sempre e depois ainda lhe pagava o almoço. Sou ou não sou um bom companheiro?

Eheheheh. O Domingos mais o Semedo eram talvez os jogadores mais simpáticos daquele Porto cheio de nervo.
O Porto que se atirava a qualquer um, não é? Eheheh. Havia jogadores ferozes, lá isso havia. Os Andrés, Paulinhos Santos e isso. Refilavam muito, mas a única coisa que me tirou do sério como futebolista foi cuspirem-me. Sabes quem é que fazia isso?

Quem?
Madjer.

Sério?
Quando se enervava, passava-se.

De resto, que tal ele?
Era grande, genial, só que fazia muito a coisa dele. Às vezes, prendia demasiado a bola e pedia-se outro tipo de jogo, sobretudo naqueles jogos mais trabalhados, em campos mais pequenos e complicados. Pensava muito nele, com alguma despreocupação à mistura. Tu vês isso no golo de calcanhar ao Bayern. Qualquer um de nós teria entortado o corpo todo para acertar na bola de frente para a baliza, como se fosse um cão ou um gato. Ele, não. Cá vai disto, de calcanhar. Siiiiga.

Deu certo.
E mais certo deu aquela jogada do 2-1. Ele já estava cá fora, satisfeito da vida pelo golo, quando o Celso lhe mete a bola. A dança à frente do defesa do Bayern é fantástica e o cruzamento é magnífico. Sabes que antes disso o Madjer era bom e só. Depois desse jogo, foi o boom, tornou-se um jogador global. Já reparaste que só deu certo no Porto? Em França, jogava na 2.ª divisão. No Valencia, foi recambiado para o Porto.

Pois foi, Valencia.
Diz-se por aí que foi o Quinito que permitiu o regresso do Madjer em vez da contratação do Romário.

Romário?
Ah pois. Nós jogámos com o Vasco da Gama e o número 11 era o Romário. Deu-nos a volta à cabeça e já estava referenciado, só que o Quinito preferiu o regresso do Madjer.

Xiiiiii.
Outro brasileiro que esteve quase quase aqui foi o Mozer. Fizemos um jogo com o Flamengo, ainda com Júnior e tal.

Zico, também?
Não, o Zico já estava na Udinese. Digo-te, o Mozer é o melhor central que já vi. Sim senhor, o Ricardo Gomes é craque e classe, tudo num só. Mas o Mozer era mais tramado. Quando o via a uns 10 metros de mim, passava logo a bola. Metia a bola para onde estivesse virado, mesmo que ninguém estivesse lá, queria saber zero. Só sabia que não queria vê-lo a aproximar-se. Se o Mozer viesse para o Porto, iria adaptar-se na perfeição. Digo eu.

E diz bem, o Jaime tem moral para falar.
Eu? Estou fora do negócio há algum tempo.

Isso é bom para apreciar o resto.
Verdade, mas só te digo isto: quem não aparece, é esquecido. Disso tenho a certeza. Nada vem ter a casa, nem trabalho nem amigos. Só coisas más, só contas. Às vezes, digo ao carteiro ‘fora daqui, você é o pior inimigo das pessoas, só contas para pagar.’ A sério, digo-lhe mesmo [Jaime Pacheco baixa a voz como se lhe sussurrasse ao ouvido] ‘o carteiro só traz coisas más.’

O primeiro golo do Jaime Pacheco na 1.ª divisão é com o Boavista [só depois percebo que há um engano, paciência]
Ai é? Julgava que não [pois claro]. Nesse golo, só empurrei a bola em cima da linha de golo. Parecia um ponta-de-lança que sabia exatamente onde é que a bola ia parar. Só que não. Nesse dia, o Jacques marcou uns quatro, não foi?

Que tal esse Jacques? Até foi melhor marcador do campeonato em 1982.
Bom jogador, bom finalizador, mas era frágil, até daqui [e aponta para a cabeça]. Não era guerreiro e tinha medo. Pouco robusto, com dificuldade em terrenos mais pesados. Aquilo que digo sobre este Benfica, com os Cervis e os Grimaldos. Falta-lhes combate, robustez. Olha, um jogador que tenho uma admiração infinita como amigo, homem e jogador é o Rui Barros. Era pequenino e robusto. Ia ao choque, sem medo da briga pela bola. Como o Frasco, por exemplo. O Jacques, não. E, curioso, o Jacques sempre disse que ia abandonar o futebol mal arrumasse as botas. Verdade, nunca mais ninguém lhe meteu a vista em cima. Um pouco como o Vermelhinho. Os dois gostam do futebol puro e duro, só não gostam das pessoas de fora à volta do jogo

Como o Jordão.
Que grande jogador, porra. Tinha tudo, tudo. De uma elegância, faz favor. Engraçado, vi-o jogar muitas vezes com a bola esquerda com piton de alumínio e a direita com piton de borracha.

Sério?
Suponho que era para o pé de apoio, dar mais firmeza. Tem lógica porque todos têm um pé de apoio, o dos pitons de alumínio para o Jordão. Gostei muito de jogar com ele.

Sporting e Vitória?
Só Sporting. Quando ao cheguei ao Bonfim, ele já tinha saído e acabado a carreira. No Sporting, estive dois anos e apanhei o melhor capitão da minha vida: o Manuel Fernandes. Foi ele quem me levou para Setúbal, aliás.

O que fazia dele como um grande capitão?
Diferente. Tinha um lado humano sensacional e, depois, era uma figura presencial em todos os sentidos: Preocupava-se com todos: companheiros, roupeiros, médicos, dirigentes, porteiros. Tinha sempre a preocupação de se envolver com todos. No jogo propriamente dito, ele também tinha muita graça. Sempre que havia centrais bravos, ele agarrava na bola e, ainda a três metros deles, já começava a fazer reduções de velocidade em vez de se atirar para a frente. E eu, do meio-campo, ‘ò Manel’ [Jaime faz o gesto de avançar sem medos], e ele fazia-me assim [Jaime faz o manguito enquanto diz ‘vai tu, f***-se’]. O Manel era f*****, chegava ali e taaau, golo. E depois dizia uma coisa que a gente ouve só que não ouve o suficiente.

Qual?
Apanhámos o Sporting numa fase em que tinha uma geração a acabar e outra a começar, com miúdos talentosos a aparecer.

Como quem?
Mário Jorge, Litos, Morato, Carlos Xavier, Oceano, Lima, até o Venâncio era mais velho mas também estava naquela fase. E o Manel dizia assim para nós. Digo nós, porque eu tinha 24 anos: ‘Vocês não sabem o que é ser futebolista. Isto é a melhor vida do mundo. Quando deixarem de jogar à bola é que vão dar valor. Estou a dizer isto para alertar-vos o quanto antes, para valorizarem a partir de agora.’ Naquela altura, o Sporting era uma desgraça.

Então?
Não tinha aquele sentido profissional a que habituado aqui. Sei que se calhar não é por aí, mas se calhar até é. Eles se ganhassem ficavam contentes, se perdessem não ficavam tristes. Tanto cantavam na hora de ir para o jogo como cantavam depois de perder. Isso fazia-me confusão.

Aqui não era assim?
Nããããããão.

Aqui não havia muita democracia na hora da derrota?
Zero, zero. Havia um ou outro que não se enquadrava muito bem e o próprio grupo rejeitava-o, sabes? É verdade. Aqui, é matar para ganhar senão podes morrer. Se a comunicação social dissesse que tinhas sido o melhor em campo no domingo, aparecias no treino de terça-feira com a certeza de que tinhas de dar mais que os outros para voltar a jogar. Era esse o sentimento do dia a dia, não havia facilidades. Quer dizer, havia um ou outro.

Quem, por exemplo?
O Romeu. Era uma coisa, foi sempre um bocado diferente de todos, alguns parafusos provocavam curto-circuito. Boa gente, hã? E jogava bem, era agressivo, rápido e chutava bem. Um atleta. Podia até ter sido melhor do que foi, só que esse comportamento não o ajudou. Se fosse eleito o melhor em campo, passava a semana [Jaime Pacheco faz uma cara feliz e abana a cabeça a olhar de um lado para o outro]. Chegava ao campo, o tempo passava e nada. Ele perdia um bocado por isso. Aqueles treinos de conjunto era para partir.

Mas nunca partiram ninguém.
Aaaaaaaaaaaaah [como quem diz, ai partimos partimos]. O Simões, com as suas tesouradas. Uma vez, partiu o Walsh. E outra vez já não me lembro quem é que ele partiu. Sei é que ele estava a jogar na equipa de suplentes e o senhor Pedroto disse ‘deixa-me mas é meter este maluco para a equipa principal, senão daqui a nada não tenho jogadores para ir a jogo’.

O Simões é aquele de bigode, não é?
É, é. A gente chamava-o de galo bêbado.

Galo bêbado?
Um profissional do tamanho do mundo, fooooge. Treinava sempre com impermeáveis.

Porquê?
Para o peso estar sempre ali certinho. Ele metia tudo o que era vitamina dentro do iogurte, como marmelada, compota. E acordava a meio da noite para comer sopa fria. Pá, ele era muito giro. Na tropa, tinha sido porta-estandarte e não sabia o que era a esquerda ou a direita. Quando o comandante dizia esquerda, ele não ia logo, ficava a olhar pelo canto do olho para ver o movimento do pelotão.

Apareces no Porto, como?
Vim treinar à experiência e apanho o Porto bicampeão nacional, em 1978. À baliza, Rui, Fonseca e Torres. O Fonseca era mais reservado e é um dos meus melhores amigos do futebol. Foi até meu adjunto no Vitória. O Torres é agora fotógrafo. Às vezes, vinha de Setúbal para o Porto e não lhe apetecia treinar. Então, pedia o termómetro, metia-o debaixo dos infra-vermelhos, depois debaixo do braço e dizia ‘tenho febre’. Que personagem. Ele defendia bem, só que não era muito de se atirar para o chão. Nos treinos, nós atirávamos à baliza e ele nada. Quando era golo, ele dizia ‘se fosse no jogo, esta bola era minha’.

Eram vocês que treinavam os guarda-redes?
Rematávamos, como hoje se faz, mas tínhamos um treinador de guarda-redes.

Quem?
O senhor Morais.

E o Pedroto?
O senhor Pedroto rematava. Ou melhor, não rematava.

Então?
Tenho um contexto, espera aí. Ias treinar à experiência e ele lá entendia, não sei porquê, por intuição ou indicação de alguém, se eras bom ou não. Primeiro, metia-te a dar toques na bola. Passado um bocado, mandava-te para a baliza. Fui à baliza, eu. Por acaso, nunca fiquei lá muito tempo, mas ia. E, às vezes, chamava-te para o treino conjunto. Agora, toda a gente sabe que há feitios e feitios. Há jogadores que apareciam no dia seguinte e outros que nunca mais lá voltavam. A esses, o senhor Pedroto dizia ‘se não o mandasse embora, ele dava-nos cabo da relva. Em vez de chutar a bola, chutava no chão.’


Agora à distância, o Pedroto era muito velho para a idade que tinha. Fisicamente, pela sua pouca mobilidade, ele teria uns 90 anos.

E de cabeça?
Era mais novo que nós todos juntos. Rui, é natural que um jogador goste muito do treinador que o mete a jogar, mas aquele macaco foi o treinador que me meteu mais vezes de fora. O meu primeiro ano no Porto foi sabático, era convocado e ficava de fora. Éramos campeões nacionais, com jogadores de seleção. Dos guarda-redes já te falei: Rui, Fonseca e Torres. À defesa, o Gabriel, fabuloso, o melhor lateral-direito com quem joguei.

É agora taxista no Porto, não é?
É, sim. Depois foi para o Sporting, já em fim de carreira. Só que naquele tempo o fim de carreira era muito cedo, tipo 29/30 anos. As pessoas tinham a ideia errada de treinar cada vez menos à medida que fossem mais velhas. É precisamente o contrário, caraças. Por alguma razão, o Carlos Lopes ganhou a maratona de Los Angeles aos 37 anos. Bem, adiante. Os laterais direitos eram o Gabriel mais o Vieirinha, o do Estoril. Uma vez, o Vieirinha fez duas ou três asneiras no treino e o senhor Pedroto disse ‘quando te contratei, devia estar cá com uma bebedeira’. No meio, Simões, Freitas.

Rolando e Ronaldo?
Não, isso é antes.

Do tempo do Cubillas?
Não, também não. O Cubillas é treinado pelo Stankovic e, depois, o Monteiro da Costa.

Sabe isso na ponta da língua.
Sempre segui o futebol. Ainda por cima, o Valdemar Pacheco, meu primo direito, jogava nesse Porto. Sempre segui o futebol e sei mais do Barreirense, da CUF e do Atlético desses tempos do que dos jogadores de hoje da 1.ª divisão. Sempre foi a minha paixão, o futebol.

Ia aos jogos?
Não, não, ouvia-os na rádio. E em 1966 vi o Mundial todo de Portugal pela televisão.

Em casa?
No café. O meu irmão segurava-me entre as pernas e eu ficava ali, todo animado. Ò Rui, não sei precisar a idade nem nada, mas ainda me lembro de ver o Real Madrid de Di Stéfano, Del Sol e Amancio.

Estávamos a falar dos centrais do Porto.
É verdade. Eram esses mais o Teixeira e o Murça. No meio, Rodolfo, Duda, Marco Aurélio, Octávio. Depois, Oliveira, Vital, Gomes. Nesse tal ano sabático, treinava muito com ele. E só jogava em homenagens e assim. Eu e outras jovens promessas, como o João Gouveia, o Brandão e o Freitas. Entrei ali numa fase em que o Porto ganhava e era complicado. E era diferente. Eu agora faço 15 minutos daqui à minha terra. Naquele tempo, demorava duas horas. Os meus pais tinham carro mas era para ir à missa e pronto. Eu ainda cheguei a ir de carreira para os treinos nas Antas. A carreira fazia Paços de Ferreira-Porto e parava em todo o lado. A paragem final era o Bonfim e eu lá ia a pé até ao estádio. Acabava o treino e descia para fazer o percurso inverso. Se me atrasasse por qualquer motivo, apanhava o 94 para Valongo e ia à boleia para casa, que ainda eram 10 quilómetros.

O tempo mudou e muito.
Sou de Rebordosa e comecei a jogar no Aliados, onde o meu irmão jogava e era geralmente o segundo melhor marcador da equipa. Era um bom central, que se posicionava bem nos cantos e rematava os livres com força. Agora o meu pai não queria que eu jogasse futebol. Até porque isso atrapalhava o trabalho com ele.

Trabalhava em quê?
Móveis. Era pai de marceneiro, sobrinho de marceneiro e ia ter filhos marceneiros e por aí adiante. Lá era assim. No Rebordosa, havia um senhor chamado Feliciano, ex-jogador do Vitória de Guimarães. Casou ali e fixou-se. Era muito bom, porque melhorava os jogadores que eram bons e fazia-os bons aqueles assim-assim. Como queria muito jogar, perguntei o que era preciso fazer e ele pediu-me duas fotografias. Assim foi. No final da primeira semana de treinos, joguei logo com a ficha de outro que não jogava nada e não tinha sido convocado. Ò Rui, já tinha 16 anos.

Já?
Naquela altura, acordava às 6 da manhã e trabalhava até às 7 da noite. Se o meu pai estivesse bem-disposto, deixava-me levar a moto para o treino. Se não, dava dinheiro a um rapazito que era trolha para ele fazer a viagem Paços-Figueiró e trazer-me uma bicicleta. Às vezes, vinha noite cerrada, sem iluminação nenhuma. E, às vezes, ia e vinha a pé. Só havia um treino por semana, às quarta-feiras. E quando estava muito frio nem havia água. Nem fria nem quente. Os canos congelavam e deixa-te estar. E as botas?

Que têm?
No domingo, antes do jogo, o roupeiro trazia um saco de batatas com as chuteiras lá dentro e despejava-as no chão. Aquilo era uma bagunça, ò Rui: havia duas esquerdas atadas uma à outra ou um 43 e um 41 ou uma assim [entorta a mão para o lado direito] e outra assado [entorta a mão para o lado esquerdo]. Com pitons de plástico, já muito gastas. E tínhamos de jogar com duas meias para encaixar nas botas. Era cá uma aventura. Se fizéssemos um bom resultado, a bandeira do clube começava a girar e os associados davam-nos dinheiro, 25 escudos, 50, o que fosse.

Pouco mas…
Olha, eu não fazia por mal, mas gastava algum dinheiro no roupeiro. Dava-lhe e ele garantia-me as melhores chuteiras. Uma história curiosa. No meu tempo, as pessoas transportavam cadeiras à cabeça de uma terra para a outra. Era assim. Quilómetros e quilómetros. E havia uma senhora que passava ali na terra e os homens dizia-lhe ‘ai linda que vais para os ciganos’. Eu, ainda miúdo, via-a uma vez e gritei-lhe ‘ai linda que vais para os ciganos’. Certo dia, estou muito bem encostado a um muro no Rebordosa, e ouço ‘ai linda que vais para os ciganos’. Era ela, que levava aquilo na boa. E era ela, a mulher do roupeiro.

E como é que se dá a passagem do Aliados para o Porto?
É fácil. Joguei dois anos e meio no Aliados. No primeiro, fomos campeões nacionais da 3ª divisão. No ano seguinte, fomos à liguilha. Ficamos atrás do Famalicão, que tinha a melhor equipa de sempre: Vítor Oliveira, Jacques do Porto, Reinaldo do Benfica, António Borges do Chaves, Zezinho do Sporting, Ruca do Gil Vicente, Branco do Boavista. Um plantel fabuloso, o treinador era o José Carlos, o Magriço de 66.

Foram à liguilha e então?
O grupo tinha Académico de Viseu, campeão da zona centro, e Juventude de Évora, campeão da zona sul. Não subimos e, no último jogo com o Atlético Viseu, tínhamos de ganhar por seis. Só que houve umas confusões na véspera, e até no próprio dia, e alguns titulares não foram a jogo.

O Jaime foi?
Eu e o Teixeira. O melhor jogador que vi na 3.ª divisão foi o Teixeira, o fichas, o adjunto do António Oliveira no Porto e na seleção. Jogava muito, fazia golos, malandro no campo, sabia tudo. Grande jogador. O melhor que vi na 3.ª. Depois de mim, eheheh. Estou a sempre a meter-me com ele. Empatámos 1-1 e não subimos. No ano seguinte, a direção desmembrou-se toda para o ano seguinte e só nos pagaram o primeiro ordenado, o de Agosto. Até Dezembro, nada de nada. Havia jogadores, sobretudo os mais velhos, que não tinham dinheiro para comer. E eles disseram-me para falar com a dreção. Fui lá e disse ‘se vocês pagarem, muito bem; se não, não volto mais’.

E então?
Como não pagaram, não voltei mais e comecei a jogar em torneios. Num desses torneios, um retornado que tinha jogado nos Aliados e trabalhava nos escritórios do doutor Caldeira, o pai destes Caldeiras, viu-me e disse-lhe. Um belo dia, fui treinar ao São Domingos de Santo Tirso, onde jogava o meu irmão já em fim de carreira. Como era uma equipa das distritais, pegava na bola e ia por ali fora a fintar toda a gente. No final do treino, aparece-me o tal senhor a falar-me do Porto. ‘Estou cansado, não quero ir’, disse-lhe.

Cansado?
No dia seguinte, o meu pai ia bater-me à porta às oito da manhã. Ou antes até. E não gostava do Porto.

Não gostavas?
Não, era do Benfica.

Eheheheh.
É verdade, e nunca escondi isso. Pelo Eusébio, Simões, Coluna, Jaime Graça, Costa Pereira, Jacinto.

Havia mais benfiquistas no plantel do Porto?
Acho que o Gabriel também era. E, se calhar, havia outros camuflados.

O Jaime dizia abertamente e eles na boa?
Aaahhhhhhh, eles não gostavam nada. Nada. Ò Rui, durante os estágios, ia ver o hóquei em patins, com Ramalhete, Garrancho, Jorge Vicente, Livramento, e ganhávamos. Toma [Jaime fecha a mão direita e abana-a]. Só que o meu pai era do Porto e disse ‘vai lá’.

E o Jaime?
Fui, claro. Estávamos em Abril e não jogava desde Janeiro. Era uma quinta-feira, treino de conjunto. Nunca mais me esqueço, o Rodolfo tinha ido ao centro de medicina. Foi o senhor Caldeira, que era muito amigo do senhor Pedroto, que falou de mim. E o senhor Pedroto recebeu-me antes do treino e fez-me perguntas. Uns meses depois, admitiu que não acreditava em mim.

Porquê?
Disse-lhe que estava pronto, só que estávamos em Abril e não jogava futebol 11 desde Janeiro. Aqui, tenho de fazer um parêntesis ao senhor Júlio Teixeira. Quando me recebeu no Rebordosa, disse-me que ia dar-me pernas de jogador em três meses. E deu, com apenas um treino por semana. Tanto deu que me aguentei no Aliados com três/quatro treinos por semana e depois no Porto. O senhor Júlio gostava de mim para caramba e nunca lhe fiz a devidamente homenagem. As pernas de jogador também são dele. E a verdade é que sempre corri muito. Tanto assim é que o senhor Pedroto dava-me cabo da cabeça cada vez que acabava em segundo no teste Cooper.

Quem era o primeiro?
O João Pinto. Só ganhava quando eu facilitava. O que é que fazia o João? Dava um sprint no início e ganhava-nos 100 metros. Depois era só gerir. Isso acontecia nos dias em que eu estava bem-disposto e ficava cá para trás à conversa, a pensar nas voltas que faltavam para acabar aquilo. Se estivesse concentrado e chegássemos juntos aos últimos metros, eu ganhava ao João Pinto na velocidade. Entretanto, em Maio, tenho de ir para a tropa. E o senhor Pedroto disse-me logo ‘quando saíres da tropa, vens para aqui’. Andei um mês na tropa.

Só, então?
Paguei. Andei aqui perto, na Boa Hora. Fiz 15 dias e depois meti baixa de 15 dias. No último dia, havia um jogo de futsal. Joguei à baliza e a nossa equipa estava a ganhar por cinco. Ao intervalo, pedi ao furriel para mudar de equipa. Deram-me autorização e demos a volta. Ganhámos 12-6 ou lá o que foi. Bom, saio da tropa e não me apetece ir para o Porto, até porque pensei que o senhor Pedroto estivesse só a ser simpático naquele meu último dia nas Antas. Entretanto, meteu-se o Paços de Ferreira, só que não gostei da conversa nas negociações. Depois veio o Rio Ave, que me queria a mim e ao Álvaro Soares. Perguntaram-nos o ordenado por mês. Pedi 40 contos e o Álvaro Soares, conhecido como Chico Moleza, 30. Chegámos a Vila do Conde e o treinador era o Pedro Gomes. Ele olhou para o Álvaro Soares, que era alto, e para mim, que era baixo, e só escolheu o Álvaro. Fui-me embora. Passado uma semana, aparece o Beira-Mar. Treinava lá o senhor Fernando Cabrita. Só que queriam que eu fizesse uns testes, disse-lhes que nem pensar, só ia com contrato assinado. Já me bastava o Rio Ave. Depois, a Académica. O senhor Macedo bate-me à porta de casa e levou-me para Coimbra B. Ainda tenho esse contrato em casa. Às tantas, perguntam-me quais são as tuas habilitações literárias? Não queria estudar, não fui para a Académica. No dia seguinte, batem-me à porta de casa e é um senhor a insistir para ir ao Porto.

E?
Fui à Segrobe, uma empresa de eletrodomésticos, onde trabalhava o Pinto da Costa. Reuni-me com ele e mostrou-me um contrato paralelo. A história do saco azul e tal, já a conhecia esse truque desde os tempos do Aliados do Lordelo. Então o Rodolfo, que era o capitão, ganhava 30 contos e eu ia ganhar o mesmo? Treta, já sabia que treta. O Pedroto falou então comigo e disse-me que ia ganhar 60 contos.

E afinal o Rodolfo ganhava quanto?
Uns 300. Só que o contrato paralelo, enviado à federação, dizia 30.

Feitas as contas, esses 60 contos ficava em quanto?
Desse 60, a federação ficava com 35, descontava 7 contos e sobravam 28. O meu processo no Porto começa aí, com o senhor Pedroto. Que foi o treinador que mais me pôs de fora e aquele que mais gosto. Depois há o Verão quente, sabes?

Em 1980?
Isso, e o senhor Pedroto vai-se embora. Ainda ontem estava a ver um vídeo do Vítor Baptista.

O Maior?
Sempre o admirei. Quando cheguei a Setúbal, perguntei por ele e disseram-me que estava a trabalhar no cemitério. Coveiro [Jaime Pacheco passa a mão pelos braços como que a dizer arrepiado]. Cheguei lá ao cemitério e encontrei-o. Fui ao seu encontro, estiquei-lhe a mão e ele ‘tu conheces-me?’. Então não o conhecia, adorava o Vítor Baptista. ‘Você para mim era um ídolo’, disse-lhe. Então estava a ver um vídeo do Vítor Baptista e, de repente, passou para o programa do Rodolfo, Alves e Manel Fernandes. Há ali uma picardia entre o Rodolfo e o Manel sobre os presidentes. O Manel defende o Bruno de Carvalho, o Rodolfo atira-se a ele e o Manel diz-lhe que sabe que o Sporting não contava para os jogadores do Porto no seu tempo. E isso é verdade, o Benfica é que estava connosco na luta pelo título. Bom, aí o Rodolfo diz-lhe ‘ahh, isso devem ter sido aqueles que fugiram do Porto’. Se eu tivesse lá, dizia-lhe ‘Ò Rodolfo, eu fui dos que fugi para o Sporting mas tu fugiste primeiro.’

Quando?
No Verão quente, ele estava ao lado do senhor Pedroto e do Pinto da Costa. Deram-lhe uma quinta na Maia, ele sacou a quinta e virou-se para o outro lado. Percebes? Ele não tem moral para falar. Agora é verdade que o Sporting não contava, era o Benfica. O Benfica era f*****. Aquela seita do Barreiro, porra. Aquilo era uma estátua a cada um. Começava na baliza, com o Bento. O Bento foi o melhor guarda-redes português, não foi o Vítor Baía. O Bento era marreco, tinha um metro-e-pouco, o pé de chibo.

Pé de chibo?
Ele tinha o tornozelo de fora, por causa de uma lesão ou o que era. Na seleção, costumava andar na palhaçada com o Carlos Manuel mais o Diamantino e eles é que apontavam para o Bento a gozar com ele. E o Bento, sempre à frente do pelotão e sempre zangado com o mundo. Foda-se, o gajo defendia tudo. Se houvesse um penálti para decidir o campeonato, o filho da p*** defendia. Treinava como um desgraçado, a sério. No final do treino, a gente rematava, rematava, rematava e o gajo não arredava da baliza, estava sempre pronto para mais, mais e mais. A minha primeira internacionalização foi com a Alemanha, no Restelo. Todo o Benfica se esquivou a jogar, iam a Craiova ou lá o que era, e o Bento estava lá. E todo partido. Ele jogou lesionado num pé e há uma jogada em que a bola lhe bateu na ponta da bota. Virou o boneco e pensei ‘pronto, este também vai sair’. Qual quê, ele aguentou-se até ao fim. A gente fala muito do Damas, com quem joguei, só que o Damas não tinha a paixão do Bento. Lembras-te do Mundial 86?

Claro.
O Bento lesionou-se a meio de um treino. Fui que cruzei a p*** da bola. Estávamos a jogar, só valia golos de cabeça. E eu para o Bento ‘vai pé-de-chibo’. Craaaac. O Damas vira-se para mim e ‘diz ao Torres para meter o Jorge Martins [o terceiro guarda-redes português, do Belenenses], estava tão bem aqui sossegado’. O Damas podia ter sido muito melhor, se tivesse o espírito do Bento. Atenção, o Damas é grande amigo e estávamos sempre juntos no Sporting e na seleção, até nos veteranos. Dividíamos o quarto nos estágios. Ele fazia questão. E eu também. Aliás, uma vez fomos a Macau no dia de Portugal, 10 Junho. E eu fazia anos de casado a 9. Na ausência da minha mulher, quem levei a jantar? O Damas, ao Casino Lisboa.

Jajajajajaja. E a malta do Barreiro, Bento e mais quem?
Oliveira, José Luís, Frederico, Araújo.

Araújo?
Supostamente melhor que o Carlos Manuel, só que teve um problema qualquer e caiu. Aquela mística com o Humberto. Isso era do c*****.

E o Alves, não?
O Alves já na segunda fase do Benfica, sim. Eu cheguei a jogar de luvas nos juniores do Rebordosa, por causa do Alves. Gostava muito dele.

Como?
Uma vez, vi o torneio internacional da Páscoa que mistura equipas portuguesas com estrangeiros. Havia o Porto, com Quim, Rodolfo, Ferreira da Costa e Gomes. E havia o Benfica, com Fidalgo, Sarmento, Caires, o pai do Bruno, Norton de Matos, Zuledo, um cigano que depois foi jogar para o Estoril, Franco, Ramalho, Cavungi, N’Habola, Shéu. E o Alves. Era genial e malandro. Como jogava de luvas, imitei-o. Passei sempre ao lado da guerrilha Norte-Sul. Os jogadores do Benfica aceitavam-me como um deles. No Verão quente, vem o Stessl e comecei a jogar à 6.ª ou 7.ª jornada. E nunca mais saí. Foi uma cegada mesmo.

O Porto dividiu-se muito.
Da mesma maneira que Portugal precisou do 25 Abril, o Porto precisava do Verão Quente. É verdade que tinha sido bicampeão nacional e falhou o tri daquela forma recambolesca, em Guimarães e na Póvoa.

Em Guimarães foi o autogolo do Manaca.
Na Póvoa, um jogador do Varzim tocou na bola com a mão e o árbitro [Veiga Trigo] disse-lhe ‘podes agarrar a bola com a mão que eu não marco penálti’.

A evolução é notável: o Verão Quente é em 1980 e o Porto vai à final da Taça das Taças em 1984.
O recomeçar é que foi importante, a partir de 1982, com a saída do Américo de Sá e a reentrada do Pinto da Costa e do senhor Pedroto. Vê bem o que fez o senhor Pedroto: mandou contratar o Eurico e o Inácio, dois profissionais e não duas estrelas que pudessem colocar em causa a pujança do grupo de trabalho. Agora repara, o caso do João Pinto.

Então?
Ele parecia que jogava com os sapatos da Dora.

Dora?
A do festival da canção. Na altura, ela apresentou-se com uns sapatos altos e o João Pinto parecia que estava a jogar com eles pela falta de qualidade no passe e até nos cruzamentos. Ainda hoje, ele cruza mal. Porra. Mete as bolas direito, pá. A gente ainda lhe diz isso nos jogos de veteranos. Agora vou dizer-te uma coisa, é o maior profissional que vi. Às vezes, via o osso fora da bota e ele cortava a chuteira para continuar a jogar. O gajo nunca dava parte de fraco. Podia estar a morrer e, se olhasses para ele, não notavas nada disso. Só que o João Pinto era muito fraco, de qualidade deficitária e sempre a médio, ou no meio ou como ponta esquerda.

Ai não era lateral-direito?
Nããããããã. Só que o senhor Pedroto apostou nele como substituto de Gabriel.

E deu-se bem?
A história diz que sim. À esquerda, o Inácio. Impecável, sóbrio, profissional. No meio, um central que era a 16.ª escolha no Varzim chamada Lima Pereira. O senhor Pedroto fez dele um jogador, é uma obra que nem o Siza Vieira. Quando o Lima não jogava, a gente sentia-se desconfortável. Ele era uma peça importante, fez-se um senhor central.

Ao lado dele, o Eurico?
Era, já bicampeão por Benfica e Sporting. A gente sentia firmeza se o Lima jogasse sem o Eurico, mas se o Eurico jogasse sem o Lima já nos sentíamos frágeis. Atenção, isso só acontecia às vezes. Sempre admirei o Eurico, só que o Lima dava-nos mais confiança.

Mas porquê?
Porque o Eurico, às vezes, queria sair a jogar e aí não tinha condição. Não sabia.

Não sabia?
Naaaaaaaada. Vou contar-te uma história: o Eurico chegou aqui e, passado uma semana ou duas, aproveitava o treino conjunto para fazer passes de 30/40 metros. Só que mandava a bola prò c******. A bola ia para fora ou batia no polícia ou batia no gradeamento ou ia para o adversário. Uma vez, o senhor Pedroto faz soar o apito a meio de um desses passes longos. ‘O que é que ias fazer’ pergunta-lhe e o Eurico ‘ia faz…’. O senhor Pedroto não o deixa acabar a frase. Nem pensar ‘ias mas é o c******’

Eheheh.
Continua o senhor Pedroto ‘estamos fartos de ganhar a bola e tu dás a bola ao bandido. Faz só isto: ganha a bola e dá a quem sabe’. À frente dele, no meio-campo, era eu, o Frasco e o Sousa. O Eurico queria falar mais um pouco e o senhor Pedroto ‘cala-te senão mando-te já de volta para Lisboa, vais de comboio e não voltas’.

Mais jogadores?
No meio, eu do Aliados do Lordelo, o Frasco do, o Sousa do Beira-Mar e o Vermelhinho do Águeda, o Jaime Magalhães dos juniores, como o Gomes. Sem dinheiro, o senhor Pedroto reuniu uma equipa, deu-lhe uns toques e fomos à final da Taça das Taças, com a Juventus.

Na baliza, quem era?
O Zé Beto, que vinha por empréstimo do Beira-Mar. Os suplentes mais utilizados eram Walsh e Costa. Uma equipa de tostões e fomos à final, vê bem?

Que tal essa final?
Vê lá bem isso. Não quero faltar ao respeito a ninguém, só acho que essas coisas não aconteciam com o senhor Pedroto. Estávamos todos a jogar com Puma e trocámos de chuteiras para Adidas. Não está correto, fizemos mal. É verdade que demos bem e é verdade que parte da Juve era 80% da seleção campeã mundial em 1982, com Platini, o melhor da Europa, mais o polaco Boniek e ainda o árbitro alemão Prokop. Aquele golo do Boniek é irregular, ele empurra o João Pinto contra o Zé Beto. E o Zé Beto estava fulo.

Sim?
Ele estava enervado, pegou na bandeirola do fiscal-de-linha e apanhou uma forte suspensão que já não foi ao Euro 84.

E vocês, o que pensaram do gesto?
Sinceramente? Também nos apetecia bater no árbitro.

E o Jaime é titular sempre?
Deixei de ser em Janeiro 1986, num jogo na Luz, 3-1 para o Benfica, hat-trick do Rui Águas. Parti o joelho numa jogada entre o Veloso e o Futre e ainda fiquei 10 ou 15 minutos em campo, a coxear.

Veloso, Futre e Jaime, que sanduíche.
O lance foi ali mais ou menos no meio-campo, de quem ataca para sul. O Veloso e o Futre chocam e eu desviei-me deles com um salto. Quando meto o pé direito ao chão, taaaaau. Parti-me todo. Tive dois problemas no futebol: esse joelho partido em 1986 e a pubalgia no Sporting, em 1984. Não conseguia juntar as pernas. Nessa época, quando jogava em Alvalade, descia as escadas do túnel agarrado à parede e levava Voltaren aos sábados à noite, domingos antes do jogo e até ao intervalo. E Joguei o Europeu de França todo cheio de injeções de Voltaren, aqui e aqui [e aponta para as virilhas].

Que tal esse Europeu?
Estagiámos numa estalagem em Palmela e, às tantas, o Toni chama-me a um canto. Pega num telefone e do outro lado está o Eriksson. Tinha acabado de assinar pela Roma e queria que eu fosse com ele. No dia seguinte, a malta do Porto para a do Benfica: ‘vocês jogam tão bem e o Eriksson quer é um jogador do Porto’.

Mas o Jaime acabou por não ir.
Foi aquele brasileiro, o Toninho Cerezo. O namoro da Roma começou um ano antes, quando jogámos na Taça das Taças 81-82, ainda na era Stessl, e colei-me ao Falcão. Ele nem tocou na bola. Tinha jeito para essas coisas, mas não gostava nada da marcação, f****. Ficava mesmo f*****. Fosse o Falcao, o Platini ou o Oliveira. Um dia, o Falcão veio cá e perguntou por aquele miúdo. Disseram-lhe que já era treinador, eheheh. Nesse dia do 0-0 em Roma, em que marquei o Falcão, o Lima Pereira foi lateral-esquerdo. Uns dias depois, estávamos a jogar em São Mamede de Infesta e eu para ele ‘Liminha, há 15 dias, Olímpico de Roma com mais de 60 mil pessoas, agora São Mamede de Infesta’. Nós éramos assim, tínhamos um espírito do caraças. A malta é que levava a mal, mas a nossa intenção nunca foi essa. Aliás, quando jogávamos lá fora, com aqueles alemães, belgas, todos altos e fortes, a gente dizia uns para os outros, ainda perfilados para a bancada, ‘se estivermos a perder 3-0 ao intervalo, já é bom.’ Era uma forma de descontrair, era um escape.

O Jaime não foi para a Roma e foi para o Sporting.
Houve ali falta de diálogo, acho eu. No dia em que perdemos 3-2 com a Jugoslávia, ainda ainda do Euro 1984, passei a noite de sábado para domingo reunido com o presidente e treinador do Verona mais Gomes, Luciano D’Onofrio e Filipovic a negociar a ida para Itália.

Xiiii, o Verona que foi campeão italiano no ano seguinte.
Disse ao Gomes ‘se formos para lá, eles descem de divisão’. Lá está, aquela coisa de brincarmos com as coisas. Não fomos, foram o Briegel [alemão] e o Larsen [dinamarquês] e eles foram campeões. Às tantas da noite, já estava farto de tanto negociar, preenchi um papel em branco com o meu valor e fui-me embora. ‘Gomes, estou farto de conversar e de falar de liras, dólares e contos, vou-me pirar.’ Queria ver para o Porto, porque tínhamos folga no domingo.

Quem era o treinador e o presidente do Verona?
O treinador era o Bagnoli, o presidente já não me lembro, mas gostava muito de mim e dizia-me ‘Paqueco, Paqueco, grandi giocatore’. Jantámos com eles e estivemos juntos até de manhã. Muita conversa.

E mais?
O Milan também esteve interessado em nós e nada se fez ainda hoje não sei porquê. Portanto, Roma, Verona e Milan todos interessados em mim e no Gomes. Durante o Euro, o presidente foi três vezes a França para falar com o Gomes. Comigo, nada. Nunca estive com ele como estou agora contigo, nem sequer dois minutos. Em oito anos, nunca estive assim com ele. Acho que começámos mal desde o primeiro encontro no Segrobe. Na altura, eu ganhava 175 contos por mês, o Gomes 800 contos e o Walsh 1250, pagos em libras. Quando quiseram que eu renovasse, davam-me 420. Era uma desconsideração. Fui eleito o melhor jogador português do ano de 1984. Epá, recusei os 420 contos por mês.

Recusou ao Pinto da Costa?
A conversa foi com o Luís César e ele ‘já viste, de 175 para 420 é muito’. Epá, não estava para isso e o Jordão abordou-me durante o estágio do Euro para assinar pelo Sporting.

Toni, Eriksson, Jordão, é só contactos durante o estágio.
O melhor do estágio e do Euro foi dividir o quarto com o Lima. Das melhores coisas do mundo era estar com o Liminha, havia sempre histórias e brincadeiras. Ele arranjava sempre maneira de nos divertir.

É o seu melhor amigo do futebol?
O melhor de todos é o Frasco, jantamos todas as semanas. Agora o Lima foi o maior galã do futebol. Tinha pinta, o sacana. No treino, ele era apanhado algumas vezes em contrapé.

Então?
Às vezes, o treinador excluía-o a meio do treino para poupá-lo e a gente picava-o, com um ‘já foste ò Liminha’. E ele passava-se, ficava a sofrer para caraças até à hora do jogo. Chegava a hora de dizer o onze, o senhor Pedroto incluía-o e ele, cheio de moral: ‘Já queriam arrumar com o Liminha. Olha aqui, a minha camisolinha, vão ter de levar comigo e não me lixem senão faço golo para trás’. Eheheheheh, divinal, o Liminha. Tenho outra dele: houve um jogo de veteranos entre Porto e Benfica, na Luz, e o nosso treinador era o Mário Wilson. Ao intervalo, estávamos a ganhar ao Benfica e o Wilson tirou-me. O Liminha perguntou-me se estava lesionado e disse-lhe que não. Beeeem, o Lima quase se atirou ao Mário Wilson: ‘ò capitão, o Pacheco tem de jogar. Que é isto? Você quer é que a gente perca. Nãã, nãã, o Pacheco vai jogar a segunda parte’.

E jogou?
Joguei, e fui expulso por bocas. ‘Você nem apita bem contra nós nos veteranos’.

Quem era o árbitro?
Um assim todo penteado, feiote.

Alder Dante.
Não, esse era alto.

Ezequiel Feijão?
Não, também não. Este tinha bigode.

Rosa Santos?
Não, esse era o alentejano.

Bigode, bem penteado, feiote? Não estou a ver.
Nem eu, acho que era de Lisboa, só que o nome está a escapar-me.

Então e a conversa do Jordão com o Jaime para o Sporting.
Ah pois é, o Sporting estava em eleições e o João Rocha quis levar-me. Quem tratou da negociata foi o Joaquim Oliveira. Fui ganhar no Sporting o que ganhava o Jordão.

Quanto?
Uns mil contos. Vinha para Lisboa em definitivo quando vi um bilhete do Álvaro Braga Júnior numa bomba de gasolina ali ao pé das Antas. No dia seguinte, almocei com ele, o Luís César e o Teles Roxo no Lima 5.

Para quê?
Apresentaram-me um cheque em branco. Fui tão burro, fiz coisas burras na vida, sabes? Por orgulho, mesmo.

Já tinha assinado pelo Sporting?
Há dois dias. Podia muito bem ter ligado para o Sporting e dizer que, afinal, não queria ir por razões familiares. Porque, de facto, a minha família estava destroçada. O meu pai, a minha mãe. Até parecia que ia para a guerra da Jugoslávia, nem imaginas. O que eles choraram à saída de casa.

E o Jaime?
Eu também. A caminho de Lisboa, gastei mais lágrimas que gasolina. Mas, calma, durante o almoço, eles queriam que que fosse dizer ao Pinto da Costa que ia para o Sporting. Lá fomos, à noite. Batemos à porta, entrámos na casa dele, na Alameda, boa tarde, boa noite, e o Luís César fez um discurso um bocado foleiro nham nham nham, homens assim, nham nham nham, homens assim, tive quase a mandá-lo para um sítio.

E o Jaime, repito-me?
Disse só isto ao Pinto da Costa: ‘vim cá para lhe dizer que assinei pelo Sporting e vou respeitar esse acordo’.

E o Pinto da Costa?
Nada, não disse nada. Também já sabia como eu era. Despedimo-nos e fiz-me à vida, em Lisboa.

E que tal?
Nas primeiras semanas, a falta que senti das regueifas aos almoços de sábado. Nem imaginas ò Rui. Eu, no Porto, comia só regueifas ao almoço. Sem manteiga nem nada, só o pão. Em Lisboa, qual quê. Era preciso esperar que alguém viesse do Porto e me trouxessem as regueifas.

E as memórias do Sporting? Jogos europeus, por exemplo.
No primeiro jogo, 2-0 ao Auxerre em Alvalade, um golo meu e outro do Sousa. O Sousa é o meu irmão, passei mais tempo e vivi mais intensamente com ele que com os meus irmãos. Vi-o a rir, a chorar, nu, vestido, de smoking, enlameado, o Sousa faz parte da minha vida. Isso emociona-me. Isso foi um à parte. O Auxerre tinha o Joel Bats na baliza, o Boli na defesa, o Ferreri no meio e um polaco chamado Szarmach no ataque. Lá em França, perdemos 2-0 e fomos para prolongamento. Aí, o Oceano pé-de-pato marca um golo de trivela do caraças e o Litos faz o 2-2. Nesse dia, o Porto é eliminado em casa pelo Wrexham. A notícia foi-nos dada pelo João Rocha.

O treinador do Auxerre era o Guy Roux.
Encontrei-o muitos anos depois, num Boavista-Auxerre [pré-eliminatória da Liga dos Campeões 2002-03], e ele mostra-me uma fotografia desse Sporting.

Eisch, espectáculo.
Podes crer, grande pormenor. E o Guy Roux deu-me a foto. Depois, eliminou-nos eheheh: 1-0 do Cissé no Porto e 0-0 em França. A equipa deles era muito melhor que a nossa, com Cissé, que se parecia com este Mbappé, e Fadiga. O Auxerre de 1984-85 é diferente, claro. Ainda me lembro da viagem de volta.

Conte lá.
O jogo foi quarta e passámos quase toda a quinta-feira em viagem. Primeiro, de autocarro, de Auxerre até Paris. Depois, avião para Lisboa. O Toshack teve de ir a Gales, não sei porquê, e o cabeçudo do adjunto, o Pedro Gomes, é que nos treinou. Sabes o que fez?

Nem ideia.
Duas tareias. No sábado de manhã, deu-nos uma tareia com ginástica e braços a dar a dar e tal. No domingo, já com o Toshack no banco, perdemos 2-0 em Penafiel. Estava um dia de sol forte, como hoje, e nem nos mexíamos. Foi a nossa primeira derrota e perdemos a liderança do campeonato.

E o Toshack, que tal?
Um bom treinador, só que não dava para aqui. Contra mim, falo: aqui, a liberdade igual a responsabilidade não funciona. O Toshack era muito liberal. E se ganhasse, ganhava. Se perdesse, perdia. Um certo dia, ele falou comigo sobre nomear-me capitão. ‘Você quer matar-me ou quê?’

Porquê?
Só tinha 24 anos, não tinha capacidade nem vontade para isso. Havia Manuel Fernandes, Jordão, Zezinho, Lito, jogadores do Sporting há anos e anos, com mais perfil. Recusei, claro. O Toshack, às vezes, tinha essas saídas e acreditava naquela malta jovem, muito ingénua.

Como quem?
Epá, metia às vezes o Fernando Mendes a lateral-esquerdo e o Carlos Xavier a lateral-direito. Bons jogadores, atenção, mas muito ingénuos. Se eles ainda hoje não têm cabeça, quanto mais com 20 anos. Eles não fechavam bem e era ver o Damas a sair dos postes com a língua de fora a querer bater-lhes. O Damas desesperava. Outro exemplo da malta jovem, o Litos. Jogava na direita e, às vezes, dizia ‘hoje jogo a 10 ou então não quero jogar’. O Toshack explicava-lhe que não, que tinha de ser extremo-direito como em todos os jogos anteriores e ele mantinha a sua ideia, ‘não, hoje quero ser 10’. Quer dizer, um miúdo de 18 anos que devia estar é contente por jogar e andava ali a cantar de galo. E o Lito, sem s, ficava no banco. Epá, francamente.

E depois de eliminar o Auxerre, quem se seguiu?
O Dínamo Minsk. Sem mim, que tinha sido operado. Ganhámos 2-0 em Alvalade, perdemos 2-0 lá e fomos eliminados nos penáltis.

Na época seguinte, já com o Manuel José?
Fomos até aos quartos-de-final da Taça UEFA. Eliminámos o Feyenoord e caímos na então RFA, em Colónia. Cá, 1-1. Lá, 2-0. Atenção, o Colónia tinha o Schumacher, o Allofs, que se aproveitou de um fora-de-jogo para o penálti do 1-1 em Alvalade.

Há pouco, falou-se do João Rocha. Ele tinha fome de vitória?
Tinhaaaa, muita. Só que havia muita porta aberta. No Porto, só havia uma porta, a de entrada. Era um clima de fortaleza. No Sporting, havia muitas portas escancaradas.

O João Rocha era de ir ao balneário?
Era, sim.

Dava na cabeça?
Não era de berrar nem nada, era mais de falar com as pessoas para levá-las a bem. No Sporting, havia um problema chamado Oliveira. Aquilo não funcionava bem em termos de grupo, aquilo não funcionava, não havia química entre eles. E eu ficava ao lado dele, no balneário. Admirava-o imenso e ainda hoje digo: é o melhor com quem já joguei. Porra, o gajo era um génio. No um para um, esquece. Fazia o que queria de ti. Se entrasse na área, era pé esquerdo ou direito, à vontade do freguês. Nem era preciso treinar muito. Aliás, no Porto, havia treinos em que ele nem tomava banho.

Então?
Agarrava-se à burra e nada de suar. Só que era um génio da bola. Sabes, lamento o não ter podido dar tudo no Sporting. Primeiro, foi a operação à pubalgia. Depois, a mudança de chuteiras. Cheguei ao Sporting e troquei de marca. As chuteiras do Sporting eram como as tuas sapatilhas, lisas, e isso é um veneno. Fiz uma infiltração que me dificultou a vida nos treinos e nos jogos. Ainda cheguei a ir ao Kobayashi para recuperar, só que continuava a jogar e nunca recuperei totalmente. Foi pena, gostava de ter dado mais ao Sporting.

Sai em 1986?
Isso.

Então ainda participa naquele 2-1 na Luz [penúltima jornada do campeonato, vitória do Sporting e ultrapassagem do Porto ao Benfica no primeiro lugar]?
Estava lá, claro. Esse jogo é especial. Primeiro, foi-me proposto assinar pelo Benfica se ganhasse o dérbi. E, depois, agora à distância é que se pode chegar a essa conclusão, a vitória desse dia foi de raiva.

Raiva, porquê?
Uns meses antes, perdemos 5-0 na Luz para a Taça e fomos demasiadamente penalizados pelo Francisco Silva. Num dos golos, o Morato está a proteger a bola e o Manniche empurra-o ostensivamente contra a publicidade. Estamos a perder 1-0 e começa a chover. O Bento passa a bola ao Veloso e o Veloso, sozinho, sei lá como e porquê, deu-lhe com a parte de fora do pé para dentro da baliza. Foi golo e o Francisco Silva anulou.

Quê?
Anulou, sem mais nem menos. Porquê, ainda sei. Sei que apanhei o Francisco Silva uns anos depois, na Mealhada, e ele disse-me que não foi internacional por minha causa. Minha causa? ‘Sim, foste-te queixar ao observador do jogo, que não devia apitar aquele jogo’ E eu ‘aquele jogo? você não devia era apitar mais jogo nenhum.’ Aquele 5-0 ficou-nos cá dentro. O árbitro é como vento e eu sabia perfeitamente quando éramos beneficiados ou prejudicados. Por coincidência, o Francisco Silva era o árbitro do meu regresso às Antas pelo Sporting, em que me deixei ficar para último antes de sair para o relvado e fui assobiado, o que é bom sinal. Por coincidência, o Francisco Silva, o presidente dos árbitros e o presidente do Porto apareceram no mesmo restaurante, a seguir ao jogo.

Ganhou o Porto?
Dois-um, o Lima Pereira marca um golo de cabeça. O nosso é do Venâncio, num canto. Para falar verdade, evitava passar à frente do Estádio das Antas nos primeiros tempos do Sporting. Não gostei de ter saído do Porto por tudo aquilo que passei com o senhor Pedroto e com o senhor Morais. Agora, as pessoas entendam isto. Ou se não entenderem, estou a lixar-me para elas: dos três grandes, o Sporting é o clube com menos adeptos fanáticos. As pessoas do Sporting são diferentes, distintas. É um clube especial. Vejo isso no meu irmão, que é sportinguista. Ele sente o clube, mas não é fanático. Já eu sou diferente. Como o meu pai. Somos mais fanáticos.

E as pessoas em Lisboa?
Ò Rui, nem todas as pessoas que vivem em Lisboa são de Lisboa, mas eu entrava em qualquer lado e dizia bom dia. Ninguém me respondia e eu ‘eu disse bom diaaaa’. As pessoas quase que eram obrigadas a dizer bom dia, boa tarde e boa noite. Acho que as pessoas de Lisboa são mais desprovidas dos bens materiais. Nós, aqui, é mais uma casa, mais um carro, mais uma televisão. Quando eu chegava a Lisboa, perguntava sempre se era feriado no dia seguinte.

Hum?
Estava sempre tudo cheio: restaurantes, bares, discotecas. No Porto, não. Os dias de enchente são mais definidos. Ao domingo à noite, o Porto está deserto. Durante a semana, as pessoas do Porto são mais agarradas ao trabalho. Amanhã, trabalho. Depois de amanhã, trabalho. Em Lisboa, o pessoal é mais desprendido dos valores da casa, do carro, da televisão e vivia mais o dia-a-dia, tipo logo se vê o amanhã. Se calhar, também melhorei a minha forma de ser com a vivência em Lisboa e, depois, em Setúbal.

Tinha casa em Lisboa?
No início, não. Fiquei no Hotel Alfa, na Columbano Bordalo Pinheiro. Foi lá que vi, às quatro e tal ou cinco da manhã, o Carlos Lopes a ganhar a maratona de Los Angeles. Independentemente dos clubes, sempre gostei do Carlos Lopes no atletismo, do Livramento do hóquei em patins, do Eusébio no futebol, do Cordeiro do Vale no râguebi, do João Coutinho do basquetebol, do Alves dos Santos do futebol. Essa gente foi referência, top top top. Quando vi o Eusébio pela primeira vez, quando falei com ele, parecia-me um sonho. Nunca pensei que chegasse a falar com ele, sabes? Eu vi-o pela televisão e, de repente, estava com ele.

Quando foi a primeira vez?
No jogo com a URSS, o de qualificação para o Euro 84, na Luz. Ganhámos 1-0, penálti do Jordão. Vim cá fora e fiz lá um barulho com o porteio para deixar entrar o Coluna.

O Coluna, na Luz?
Ah pois é, tive de dar uma bronca do c******. Para deixar o Coluna entrar. Nesse dia, o campo estava uma merda, todo enlameado. O futebol melhorou, e muito, nesse aspeto. Depois, joguei com o Eusébio nos veteranos e ele pediu-me para ficar ao seu lado: ‘Já sei como tu jogas, fica aqui comigo’. E nós a trocarmos a bola, tic tac tic tac. Que maravilha.

A jogar o quê?
Futsal.

Só veteranos?
Naaaada. Vou contar-te uma história: no dia em que perdemos aquela final da Taça de Portugal nas Antas, em Agosto 1983, com um golo do Carlos Manuel ao Zé Beto, saí disparado das Antas, todo f***** da cabeça e fui jogar a final de futebol de salão à minha terra.

E então?
Ganhámos 1-0, golo meu. Nem tudo correu mal nesse dia. Olha, estou animado com esta conversa. Vamos continuar lá em casa? Bora lá. Estás a fazer-me falar muito. Adorei a minha infância, na terra dos meus avós, em Lavradores e Boleiros. Aprendi lá a nadar, lembro-me bem de tudo. Dos sapatos de verniz, das roupas, dos treinos, das namoradas. Às vezes, ainda vou lá para revisitar aquelas paisagens, aquelas memórias.

[à saída do restaurante, e a caminho do carro, Jaime Pacheco encontra um admirador senegalês, vendedor de bugigangas
– eu conheço essa
-aaahhhhh, deve ser da missa, ando a ajudar o padre a tocar o sino, tim tiiiim
– nã, eu não vou a missas; você é da televisão, não é?
– nããã, nem gosto da televisão; és de que país?
– Senegal
– conheces Khadim? E o Fary?
– conheço.
– sou amigo deles.
– ahhh, tu és malandro
– malandro não, sou trabalhador
– és de um clube do futebol, não és?
– antes, antes
– anda cá, anda cá
– o que é que tu queres?
– quero vender-te um cinto
– aaaaah, hoje não pode ser, estou com pressa]

Esses anos 80 foram mágicos para o futebol português.
Claro que foram, tens quatro finais europeias (SLB 1983, FCP 1984, FCP 1987, SLB 1988), um Europeu e um Mundial.

E a estrutura federativa correspondia?
De todo, ò Rui. Aquele Mundial foi tudo uma lavagem, xiiii. Treinávamos sempre de manhã e tarde, num campo a subir, em condições precárias, enquanto os ingleses passavam o dia na piscina, em frente ao nosso hotel. Alguns dos nossos treinos implicavam viagens de 70 km para lá mais 70 km para cá. Não havia adversários. Uma vez, jogámos com uma equipa de cozinheiros e ganhámos 23-0 ou lá o que foi. Era uma desorganização total. Só porque não nos qualificámos para a segunda fase, levámos com o brinde. Dois anos antes, no Euro 84, quando fomos bem recebidos por toda a gente e louvados por todo o país pelo terceiro lugar, as nossas reivindicações eram mais agressivas. É curioso, sabes?

Mais agressivas?
Siiiim, totalmente. O grupo de 1984 tinha mais peso. Havia o Chalana, que era lixado nessas situações. Havia o Jordão e o Nené, todas velhas raposas, com um histórico muito forte na seleção. Por esse terceiro lugar, foi-nos prometido um livre-trânsito para sempre. Até hoje, zero, nada. Na preparação para o Mundial 86, o José Torres teve-nos sempre na mão. Dizia-nos ‘façam só mais este esforço’, ‘façam só mais isto’ e nós sempre com ele. Porque gostávamos muito do Torres, pelo passado como jogador e pelo feitio. Fui para o México sem saber de nada em matéria de prémio pela passagem à segunda fase, por um outro terceiro lugar, por isto ou aquilo. Não sabíamos de nada. Inclusive, nem podíamos ficar com as nossas camisolas. De acordo com os estatutos e os regulamentos, as camisolas são nossas e eles [da federação] é que ficavam com elas. No dia em que perdemos 3-1 com o Marrocos e viemos para casa, eu vi o César Grácio e o Amândio de Carvalho a rirem-se. Eu, todo f******. Até o Torres teve de me meter uma toalha na cabeça para acalmar. Estava a chorar, todo enervado, e os gajos a rirem-se pá. Eles aproveitaram-se bem de nós. Tudo isto não acontecia se o Bento se lesionasse. Se ele ficasse bom, passávamos o grupo na boa.

Assim, sem mais nem menos?
Se o sacana do Álvaro tivesse cortado o sexto dedo, aquele golo da Polónia era invalidado por fora-de-jogo. Ele levantou a mão e a ponta do dedo é que meteu o Smolarek em jogo. Sacana do Álvaro, f***-se.

No final desse Mundial, o Jaime sai do Sporting para o Porto.
Foi um bom regresso, porque queria ganhar. No Sporting, não íamos lá. Porque o Jordão estava de saída, o Manel também, o Gabriel estava em fim de carreira e tinha de voltar a ganhar. No Porto, ganhei a Taça dos Campeões no primeiro ano.

Pois foi.
E depois a Taça Intercontinental e a Supertaça Europeia. Foi uma época gloriosa.

Só não jogou a final de Viena.
Por causa de uma conversa com o Artur Jorge.

Então e aquela lesão na Luz a fugir de um choque entre Veloso e Futre?
Lesionei-me a 4 Janeiro e estava recuperado em Maio.

Pronto para jogar?
Ò Rui, tive uma conversa importante com o Artur Jorge, que define o seu estilo. Antes de viajarmos para Viena, perdemos com o Farense, 1-0 de Paco Fortes. Eu estava pronto para jogar, devidamente autorizado pelo departamento médico, e ia com tudo no treino. Podia lesionar-se outra vez, mas eu queria era jogar a final e, por isso, entrava a todo o gás. Só que os alemães conheciam-me bem, do 2-1 no Jamor, do 1-0 em Estugarda, e o Artur Jorge esteve bem na conversa. Atenção, na altura, fiquei meio assim por saber que não ia jogar, mas agora, com o tempo, sei que o Artur Jorge tomou a decisão mais correta.

Qual foi?
O Quim é o titular da final e sai ao intervalo, com o Bayern em vantagem. Imagina que era eu no lugar do Quim? Diziam ‘pois, o Artur Jorge meteu o Pacheco, que não estava em condições, e depois meteu o Frasco, que estava em campo na reviravolta. Ontem, o Sérgio Conceição não meteu o Sérgio Oliveira e aquilo correu bem? Mas o Oliveira já não meteu o Costa e apanhou quatro em Old Trafford? E o Jesualdo também já não meteu alguém e levou quatro ou cinco do Arsenal? Tudo depende se ganhas ou se perdes. Fez muito bem, o Artur Jorge, em não chamar-me para a final. Só que disse uma piada no final do jogo: ‘hoje, o prémio é o mesmo para todos, os que jogaram e os que não jogaram’. E aí o presidente esteve bem e concordou. Quem não jogou nem sequer se sentou no banco, como eu, recebeu o mesmo dos titulares e suplentes utilizados. A verdade é que o Artur Jorge levou-me a Viena e isso, de certa forma, espicaçou o grupo no sentido da dúvida instalada sobre se jogava ou não. Foi bem feito, tudo bem feito. Três dias depois, o Porto joga aqui com o Elvas e eu entro na segunda parte. E logo a seguir fomos jogar o Torneio Joan Gamper e fui titular com o Bayern.

Qual foi o resultado?
Ganhámos outra vez, agora 2-0. Tudo depende de feeling e reconhecimento. Tudo depende da nossa capacidade de interpretação. Somos filhos num dia, somos pais no outro. Somos jogadores num dia, somos treinadores no outro. Nessa final de Viena, percebi isso, ajudou-me muito a dar mais de mim.

Tanto deu que só parou aos 30-e-tal. Conte lá a aventura em Setúbal.
O Manuel Fernandes chamou-me e fui, mais simples que isto não há. Mais, foi lá que conheci a minha mulher. Namorei-a dez meses e casámos.

E bola que é bom?
Ò Rui, falámos há pouco do Zé Beto na final da Taça das Taças com a Juventus. Vê lá isto: já vamos na 7.ª jornada do campeonato nacional e quantas vezes já foi o Sérgio Conceição repreendido ou chamado à atenção? Zero. Veja o historial dele no Olhanense, Académica, Braga e Vitória de Guimarães. E, se calhar, no Nantes. Veja lá. As pessoas falam sempre bem do lado confortável em que se é beneficiado. No outro lado é que é o bicho. Joguei entre os 20 e os 30 no Porto e Sporting. Nunca fui castigado.

A sério?
Nunca. Só os maldizentes é que me apontavam como violento. Nunca o fui e até roubava a bola sem falta. Levava um amarelo aqui, outro acolá. Nunca levei um vermelho direto. Até jogar no Vitória de Setúbal. Aí, vi o vermelho direto por ter dito ‘carvalho, nem é falta’. E o Veiga Trigo, taaau. Somos amigos. Quando lhe pergunto porque é que fui expulso nesse dia, ele nem responde. Tenho só mais uma outra expulsão, também pelo Vitória. É um jogo com o Feirense, lá na Feira. Ganhámos 4-3 e é verdade que o Feirense marca o 4-4 no fim, pelo João Luís, ex-Sporting, só que o árbitro não viu. Porque o Mladenov tinha a bola, passa-a para trás e daí para o guarda-redes Jorge Martins. Como o árbitro está a olhar para um fiscal-de-linha e para o outro, perde a noção de espaço e o João Luís marca o 4-4, porque o Jorge Martins diz-lhe ‘sai daqui que já acabou’. O João Luís, irritado, dá um pontapé na bola e é golo. Efetivamente é golo, só que o árbitro está noutra. Quando se apercebe, pergunta-me, como capitão do Vitória, se foi golo e eu digo que não, porque o João Luís acertou nas mãos do Jorge Martins. O árbitro foi na minha conversa.

Fim?
O jogo foi analisado e o parecer da polícia obrigou à repetição do jogo. Quando cheguei lá, a malta de Vila da Feira queria bater-me. Durante o jogo, há um canto a nosso favor e é golo do Aparício, de cabeça. Nos festejos, o árbitro Fortunato Azevedo anula o golo. No final do jogo, o Hélio, o Vítor Madeira, essa malta, rodeia o Fortunato e eu dispersei o pessoal. À saída para o balneário, faço o sinal para os adeptos de descida de divisão e sou expulso pelo Fortunato. Ficou-me com a ficha e tudo. Nos grandes, fazia tudo. Nos outros, via amarelo se tossisse e era expulso se espirrasse. O Sousa, por exemplo, levou oito jogos de castigo no Salgueiros.

Fora isso, que tal essa equipa do Vitória com o Mladenov?
Devia ter vindo para Benfica, Sporting ou Porto. Com todo o respeito por Belenenses, Vitória Setúbal, Vitória Guimarães, Boavista e por aí fora. O Mladenov era ótimo jogador, ótima pessoa. Grande, grande. Havia bons jogadores: Serrinha, Aparício, Vítor Madeira, Hélio, Figueiredo, Makukula. Estávamos bem com o Manuel Fernandes, ali a morder os lugares europeus, e, de repente, despedem-no. Nunca entendi o porquê e até falei com o presidente sobre isso. No ano seguinte, descemos à 2.ª divisão.

E depois?
Vou para o Paços de Ferreira. Apanho o Vítor Oliveira e, depois, o professor Neca. Fizeram uma coisa ao Neca inacreditável: despediram-no na véspera de Natal. Isso não se faz, não é?

De todo.
Como era capitão, disseram que seria o treinador provisoriamente e ainda lhes indiquei quatro treinadores: Mário Reis, Joaquim Teixeira, José Romão e Eurico Gomes. Fizemos um jogo e perdemos 2-0 com o Benfica. Depois ganhámos 2-1 ao União de Madeira, para a Taça. A seguir, 3-0 do Sporting, com Figo, Peixe, Balakov, esses craques todos. Vamos jogar a Chaves, que era último, o único clube atrás de nós. Como queria inovar e não ir pelo discurso de sempre, cansativo até dizer chega, disse que íamos ganhar a Chaves. O Henrique Calisto, treinador do Chaves, viu-me no relvado e atirou-se a mim, zangado mesmo, ‘estás com uma moral do caramba’. E eu ‘se não vou ganhar ao último, vou ganhar a quem?’

E ganharam?
Dois-um. Reuni-me com a direção e eles queriam-me, só que eu descartei. Só queria jogar. Fui para casa e a minha mulher perguntou-me se tinha aceitado. Disse-lhe que não e ela ‘mas olha que deu na televisão que sim, aceitaste’. No dia seguinte, antes do treino, digo aos diretores que não quero ser. Não queria ser mesmo, nunca tinha feito rabiscos táticos no papel nem nada. Só que os jogadores queriam. Então pedi uma votação secreta, eles dentro do balneário e eu fora. Aquilo nem durou um minuto, o vice-capitão saiu e disse que todos me escolheram.

Começa aqui a carreira?
Oficialmente, sim. Acabámos esse campeonato em 9.º lugar. No ano seguinte, as coisas mudaram porque tinha treinado meio ano sem receber nada e agora tinha de mudar.

E então?
Ainda joguei meio ano no Braga, com o António Oliveira a treinador. Só que o Braga estava com salários em atraso e o Paços chamou-me outra vez. Na minha boa fé, falei com a direção do Braga e pedi-lhes que me deixassem sair.

E foi?
Paços, outra vez. Depois, Rio Ave como jogador-treinador e só jogador no Paredes, para a 3.ª divisão. É aí que aparece o União de Lamas, onde adorei trabalhar com tanta gente simpática e acessível. Calha-nos o Porto no sorteio da Taça e empatámos 0-0 nas Antas, com um penálti falhado por nós no último minuto do prolongamento.

Quem falha?
Jorge Silva. Atirou à trave.

Eisch.
No dia seguinte, estava na casa dos meus pais, a prestar apoio à minha mãe, porque o meu pai tinha falecido há uns meses, e ligam-me.

Quem?
Pimenta Machado. Tinha ouvido o relato do Porto-Lamas pela rádio e quis contratar-me.

Conseguiu?
Encontrámo-nos no parque de estacionamento no Estádio das Antas, acertámos tudo e fiquei treinador do Vitória. Começa a segunda volta e é o Manuel Machado, treinador dos juniores, a orientar a equipa em Campo Maior. Na semana seguinte, estreio-me em casa com o Benfica. Estamos a ganhar 2-0 e perdemos 4-2, com umas saídas em falso do Neno. Como treinador, é a minha única derrota em casa com o Benfica. Levantámo-nos depressa e fomos a melhor equipa da segunda volta, com vitórias atrás de vitórias e algumas goleadas como um 7-0 ao Marítimo do Autuori.

Eisch.
Tinha uma equipa do caraças. Tinha o Neno e o Nuno, que começou a jogar comigo. Sou eu que o meto a jogar com o Belenenses no dia de São Lázaro, em que o Vitória perdia sempre em casa. Tudo muda a partir daí. O Nuno ainda nunca disse isso. Defendeu bem e fixa-se. Na época seguinte, assina pelo Depor. É o primeiro negócio do Jorge Mendes, que estava quase sempre lá fora do estádio, à chuva. Sou eu que lhe abro a porta e deixo-o ficar num gabinete, ao lado da telefonista.

Quem eram os avançados?
Edinho, muito rápido, e Gilmar. Depois tinha o Ricardo Lopes, o melhor jogador a finalizar dentro da área, tanto fosse com pé direito, esquerdo, coxa, peito, calcanhar. Na estreia europeia do Buffon, pelo Parma em Guimarães, o Ricardo Lopes faz-lhe um chapéu dentro da área. Tinha o melhor jogador do Vitória de sempre. Dos que vi jogar, atenção: Paneira. Nunca vi o Jeremias nem o Edmur, mas o Paneira era um jogador. E havia o Capucho. Mais o Zahovic, que estava assim-assim no Vitória. Queriam despachá-lo.

Porquê?
Era mal amado pelos adeptos. Um dia, pediu mais dinheiro na renovação do contrato e o Pimenta. Mais tarde, disse-lhe quejá tinha arranjado um empresário: Jo-sé Vei-ga. Foi para o Porto, pois. Enfim. Tinha o Tanta, um central fabuloso. Engraçado, ele enganava-se sempre nos exercícios do treino. Se lhe dissesse que era contornar os cones, passar a bola ao adjunto e rematar na devolução, ele remata antes de passar pelos cones. Embrulhava-se todo. Durante o jogo, zero equívocos. Era bom em tudo: cortes, antecipações, jogo aéreo, rasteiro. Tudo bom.

E quem ao lado dele?
Arley ou Vítor Silva. Um dia, não havia centrais e resolvi experimentar o Meira, que era extremo-direito nos juniores. Uns jogos depois, meti-o a trinco e ficou por lá. Há muitos assim: o Ayew era extremo e passou a avançado, o Bosingwa era médio e passou a ponta, depois lateral, o Meireles era central e passou a médio.

E mais, e mais?
À esquerda, Quim Berto. À direita, José Carlos. Ganhámos em Alvalade, a perder 2-0 ao intervalo, nas Antas e na Luz. No banco de suplentes, N’Dinga e Soeiro. Mais um outro fabuloso, com o joelho todo bichado, um 10 clássico: Dane, Era um rapaz um bocado estranho, mas tive-o sempre na mão. Se ele estivesse sentado, eu sentava-me ao lado dele. Se estivesse de pé, ele metia-me de pé. Consegui levá-lo pela conversa, era fabuloso, o Dane. Ficámos em 5.º e fomos à Europa. No ano seguinte, saíram muitos jogadores e, mesmo assim, estava em 2.º quando saí de Guimarães.

Então?
Desentendi-me com o Pimenta. No negócio do Nuno para o Deportivo, ele julgava que tinha um cavalo branco chamado Milovanovic. Pensava que era o Platini e eu disse-lhe que não jogava nada, só que os adeptos gostavam dele. Um dia, em Vila do Conde, acho, tirei o Paneira, alterei o esquema tático e meti o Milovanovic de início. Ele, nada. Cada vez que jogava, a equipa perdia ou empatava. Num desses empates, 1-1 com o Boavista e o Pimenta questionou-me sobre a presença do Paneira. Disse-lhe que não tirava o Paneira, o melhor jogador da equipa, e ele isto, eu aquilo até que ‘você está despedido’. Olha olha, fui despedido no mesmo dia do Octávio Machado, num Sporting 0 Varzim 0.

Em que jornada?
À oitava.

E depois?
Já estava no Boavista em Dezembro. Estou na cama, à uma da manhã, em casa, e o Boavista tinha perdido com o Marítimo no Bessa. Toca-me o telemóvel e é o João Loureiro. Digo-lhe para falarmos no dia seguinte e ele ‘agora’. Assim foi, entrei no Boavista. Estávamos em 10º-e-tal e acabámos em sexto lugar. Na última jornada, o Porto está a ganhar 1-0 ao Marítimo e perde 2-1 ao mesmo tempo que nós estamos a ganhar 1-0 ao Campomaiorense e o Jorge Coroado anula-nos o 2-0. Depois, expulsa-me o Pedro Emanuel. O Campomaiorense dá a volta, 2-1. Uma salganhada. Uma saaaaalganhada. Mas pronto. Não vamos à Europa por causa desse jogo.

A seguir é que é.
Acabámos em 2.º, depois 5.º, depois é o título de campeão.

Inédito.
Bem bom. O problema foi depois.

Porquê?
O Boavista começou a não ter dinheiro. Pensa comigo: o Governo participou com 25% na construção dos novos estádios do Europeu 2004. Quem ajudou mais? A câmara. O do Benfica foi a Câmara. O do Sporting, o de Leiria, o de Algarve, o de Guimarães, o de Braga, o de Aveiro. Só o Boavista é que não teve a câmara, fizeram-lhe a cama.

E o Dragão?
Se calhar teve ajuda da câmara. Dizem-me que sim. E bem. Só que nada para o Boavista. Que foi o primeiro clube a começar as obras e o último a acabar. Isto não é o Boavista. Sempre foi um clube organizado. Nós já tínhamos a época seguinte toda planeada desde Fevereiro. Tudo, entre estágios, plantel, compras, vendas. A menor preocupação daquela casa era receber a horas. Quem não recebesse, era multado. Aquilo no Boavista é tudo muito trabalhado. Quem trabalha lá, merece tudo. Sei bem o que é estar lá, reconheço a força de vontade superior a qualquer outro clube. Acredita. E aquele Boavista era muito forte na liderança. Eu só dizia coisas na entrevista devidamente consertadas com o presidente João Loureiro.

E o plantel?
À baliza, William, excecional, e Ricardo, também excecional mas menos físico. Para os espicaçar, contratei um terceiro, o Khadim. Assim, William e Ricardo não descansavam de todo. Porque, antes do Khadim, bastava um errar e o outro aproveitava para entrar. A contratação do Khadim foi a forma que encontrei para ninguém se achar o número 2. Isso era coisa que não havia.

No meio?
Rui Bento. Mas como é que o Eriksson o mete a central e ainda o chama de pequeno Baresi? Nã, ele é 6. E dos bons. Roubava e dava a quem sabe, roubava e dava a quem sabe. Quando cheguei ao Boavista, era daqueles que estava sempre lesionado. E a sua cabeça funcionava muito assim, ‘prà semana vou ter uma rotura’. Mudei isso. Ainda no meio, jogavam sempre Petit e Sanchez. Quando estivesse a perder, tirava o Rui Bento e fazia entrar o Alexandre Goulart, que era um 10 fabuloso. Ainda jogou, e bem, no Nacional. Quando fazia essa substituição, o Petit ficava lixado, todo contrariado. Porra, ele só queria rematar, só que descia para 6 e perdia o contacto com a baliza. O Sanchez rejeitava o estatuto de estrela e queria ser só mais um. Por isso, cuidava-se todos os dias, na musculação. O físico era o mais importante, daí que nunca tivéssemos tido uma rotura muscular.

E mais?
Na frente, tinha Silva, Demétrios e Whellington. O Whellington, por exemplo. Ele foi-me aconselhado pelo João Loureiro numa das suas viagens ao Brasil. Jeitoso, bom de carácter. Ele viu-o e avisou-me. Pronto, foi um sucesso em alguns jogos. Outro jogador aconselhado pelo João Loureiro, é o ponta esquerda Rogério.

Boa boa.
Nas alas, Jorge Couto, Martelinho, Rogério e Duda. O Duda era rápido, mais rápido que todos os outros em velocidade de ponta. Precisávamos de um jogador assim.

É ele que marca o 1-0 ao Benfica na estreia do Mourinho.
É isso mesmo. E também marca um golo decisivo em que o Ricardo bate na bola, o Silva ganha de cabeça e ele, rápido, mete-se entre o guarda-redes e o central para desviar a bola. Quando eu e o presidente estávamos a ver os jogadores, o Duda pareceu-nos importante para fazer cócegas aos grandes.

Lá atrás?
Havia um fórmula 1 que era o Quevedo, era uma máquina. Uma máquina. Lesionou-se, com muita pena minha. Ele e o Bosingwa davam três voltas ao parque da cidade do Porto enquanto os outros davam duas. E davam mais, se fosse preciso. Um dia, o Pedro Santos estava de gatas no final da segunda volta e disse-me ‘ò mister, só faço isto porque tenho de pagar a letra da casa e do carro, senão’ Eheheheheh.

E o Martelinho?
Não tem nome de jogador nem estilo, só que tinha velocidade e inteligência. Cruzava bem, finalizava bem. Há um jogo em Faro, com o Farense a jogar todo à defesa. Por baixo, não dava. Nem bicicleta, nem comboio, nem autocarro. Pelo ar, também não dava. Ryanair, TAP, KLM, todos os caminhos estavam tapados. A caminho do balneário, digo-lhe ‘se não és homem em casa, ao menos sê homem aqui; assume uma vez que seja, vai buscar a bola, dribla’. Ele vai à casa de banho e, quando volta, ataco-o novamente. Ele queixa-se ‘o mister só se sabe a atirar-se a mim e tal’. Massacrei-lhe tanto a cabeça que ele entrou mais determinado que nunca e baralhou o Carlos Fernandes umas quatro vezes. Numa dela, cruzou e golo do Silva, 1-0. Outra vez, em Roma, para a UEFA, lesionou-se o lateral-direito Sérgio Carvalho, partiu-se-lhe o nariz, e meti o Martelo naquele lugar. O ataque era formado por Batistuta e Montella. Empatámos 1-1, sempre a jogar com pressão alta, e o Capello disse que nunca viu uma equipa assim no Olímpico. Coitado do Candela, o que ele sofreu com as arrancadas do Martelo.

A marca da agressividade estava bem presente nesse Boavista?
Sabes uma coisa? Nunca fomos uma equipa violenta nem nada disso. Esse mito criou-se na pré-época, num lance entre o Derlei e o Toñito, num Boavista-Porto. Quando acabou o jogo, o departamento médico do Porto disse cinco semanas de paragem para o Derlei. Foi um sururu tremendo. Tanto assim é que foram banhar a pantera de azul.

Ahhhhh, foi nessa altura.
Nas primeiras jornadas do campeonato, o Peseiro joga com o Boavista e alerta ‘atenção à violência’. É aí que tudo começa a fama de violento. Só exigia que fossemos destemidos, sem ser maldosos. Nunca partimos a perna a quem quer que fosse.

Qual era então o segredo dessa equipa?
Não havia invejas nem ciumeiras. E o presidente sempre ao meu lado, nas escolhas, nas decisões, em tudo. Lá dentro do campo, pressionávamos lá em cima, à saída da área deles. E isso chateava muita gente.

Até na Europa. O Boavista chegou a ir à meia-final da Taça UEFA.
Essa eliminatória com o Celtic, que coisa. O Ricardo defende um penálti do Larsson em Glasgow. Não foi o Larsson que falhou, foi o Ricardo que defendeu. Aqui, falhámos dois golos na cara do guarda-redes. Um foi a atrapalhação do Pedrosa e Filipe Anunciação. Outro, o Silva cabeceia de joelhos ao lado. Até gritei golo, mas não vi ninguém a gritar comigo. A bola saiu rente ao poste, bateu na publicidade e mexeu nas malhas. Foi esse o efeito que me confundiu. Agora, digo-te isto: o Boavista tinha cinco meses de salários em atraso. E isso faz mossa em qualquer um: como pagar a renda, como aguentar a família, como pagar o carro, como isto, como aquilo. Agora o Celtic era uma grande equipa, foooooge. Era o melhor clube da Escócia, ganhava a tudo e todos. Resumindo, fomos profissionais até ao fim. Sempre fomos assim, é a marca do Boavista.

E os grandes jogadores saíram beneficiados.
Claramente, ò Rui. Que felicidade imensa. Todos saíram para condições melhores e clubes com mais prestígio: Mário Silva, Elpídeo Silva, Rui Bento, Ricardo, Bosingwa, Meireles, Petit, Pedro Emanuel, Litos.

O Jaime também foi.
Eu fui para o clube errado na hora errada. O Maiorca é um clube pequeno. Tanto assim é que está agora na 4.ª divisão.

Quarta?
Estááááááá lá, sim. Tive um azar desgraçado.

Cheguei a ver a final da Supertaça espanhola.
Perdemos 3-0 no Bernabéu. O meu guarda-redes era um frangueiro.

Quem era?
Um argentino.

Roa?
Nãããããão.

Ustari?
Nãããão. Um argentino cabeludo que depois foi para o Atlético Madrid.

Leo Franco, será?
Exatamente. A acabar a primeira parte, uma bola fácil e ele deixa-me escapar para a recarga. No 3-0, sai-se mal a um cruzamento do Ronaldo e o Beckham marca de cabeça. Ahhhhhhhh, frangueiro, sim. Tínhamos ganho em casa por 2-1.

Também vi esse jogo, golo do Figo.
Pooooois foi, de cabeça. Quem se se sai em falso? Poooois. Isto foi fácil: o Maiorca tinha ficado em 13.º lugar, com a pior defesa do campeonato. Para salvar a época, ganhou a Taça de Espanha. Cheguei lá e indiquei o Pepe, por 300 mil contos.

O Pepe?
Por 300 mil contos. Queria levar Pepe, Martelinho e Luís Loureiro. Não quiseram nenhum. A equipa era o Poli e o Cortés nas laterais. Centrais: Nadal, que era um profissional do tamanho do mundo e já velho, mais o Lussenhoff, também veterano. Como suplentes, o Olaizola e o Fernando Niño. Um tinha sido operado já algumas vezes, o outro era uma jovem promessa. No meio, Marcos, Campaño, Toni. Lá à frente, Bruggink e Eto’o. O plantel era mais rico, mas venderam Riera para o Bordéus, Lozano para o México, Ibagaza para o Atlético Madrid e o Eto’o esteve para sair para o Valencia até à meia-noite do último dia do mercado. Se o Eto’o fosse para o Valencia, aquele central baixinho argentino [Ayala? Esqueci-me completamente de jogar ao quem é quem] ia para o Real Madrid. Portanto, a equipa ficou toda fragmentada. Ainda por cima, deram-me reforços em expressão como Nagore e Correa, que estava gordo. A equipa era fraca. Como se isso fosse pouco, o presidente morreu e foi o filho de 24/25 anos quem assumiu o lugar. Só por uns meses. Depois passou tudo ao homem da noite do Maiorca, que tinha outros planos.

E o Jaime sai?
Substitui-me o Aragoñés, que só se salvou na última jornada, com reforços em Dezembro. E, atenção, saio sem perder um único jogo em casa e com sucesso na primeira eliminatória da Taça UEFA.

Não houve ali uma confusão qualquer com o Eto’o?
Oooooooh. Se fosse quem a gente sabe, o mais gostoso de Portugal, tudo era diferente. Como fui eu, bronca. Digo sempre aos clubes para darem o regulamento aos jogadores e todos têm acesso a ele. Há regras escritas que saem e há outras que são incluídas por quem de direito. Uma dessas regras era não treinar de calças. Eu nunca treinei de calças, mas pronto. Tudo isso é alterável, com conversa, claro. Um belo dia, o Eto’o treina-me de calças. Quando o vejo sentado no meio-campo, até penso que ele está a trocar de chuteiras. Vou ter com ele e pergunto-lhe o que está a fazer.

E ele?
Pantalones.

E o Jaime?
Não é permitido, disse-lhe. E ele vestiu na mesma. Parei o treino. Tira os pantalones, pedi-lhe outra vez. E ele ‘não tiro’. Então rua. Não sei se ele tem a minha idade, mas o treinador sou eu.

E o treino seguinte?
Havia duas fações no plantel, com problemas entre os jogadores, bem visíveis no levantamento da Taça do Rei da época anterior. Quem levanta a taça, quem não deve levantar? Enfim, uma salganhada. Quando cheguei ao Maiorca, a salganhada continuava e este episódio com o Eto’o só piorava. Então, propus ao plantel fazer-se uma votação secreta para definir o estatuto de capitão e o Eto’o ficou em quarto. Se ele estivesse em primeiro, estavam todos contra mim. Percebi que não. E ele, o Eto’o, também percebeu alguma coisa, porque veio ter comigo e pediu-me desculpa pelo caso dos pantalones. Muito bem, disse-lhe, só te falta pedir desculpa à frente do grupo todo. Subimos para o relvado, juntamo-nos e o Eto’o pede a palavra. Segue-se o pedido de desculpas. ‘Furei o regulamento do grupo e quero pedir desculpa ao treinador e ao grupo’.

E a partir daí?
Tudo bem, o Eto’o era mesmo bom, o cabrão. Jogava, corria, marcava. Sempre, sempre. Nunca virava a cara à luta, era intenso e inteligente. Esse é um episódio em que o treinador tira partido da vantagem. Há regras definidas e os jogadores têm de as seguir. Agora há outras coisas definidas que podem mudar, como o caso do penálti Neymar-Cavani. No outro dia, o Jesus veio dizer que ‘comigo isso não acontecia’. Isso não é verdade, há coisas que acontecem em campo que nos ultrapassam, a nós, treinadores. Se o marcador oficial está lesionado ou com falta de confiança, dá lugar ao outro. Basta falar. Olha, uma coisa que comigo nunca acontece.

Qual?
O lateral-esquerdo marcar os cantos à direita. Ou o contrário. Porra, ao quarto canto, já está morto. A ir para lá, depois para cá. Não, isso não, nunca faço isso. E há outras coisas, pormenores.

Por exemplo?
Só se treina com botas de alumínio. Agora, há jogadores veteranos, bons de bola, como Zahovic ou Timofte, que preferem pitons de borracha. A gente entra no balneário e diz à malta ‘tudo pitons de alumínio, tudo’. E depois, assim de lado, diz ao Timofte, ‘mete os pitons de borracha que eu não estou a ver’. É preciso saber falar, sabes? Dou-te outro exemplo. Os números das camisolas do Mundial 86 foram sorteados e eu era geralmente o 10. Fui o 10 em Estugarda, era o 10 do Sporting e fui o 10 do Porto. Ora bem, no sorteio, sai o 10 ao Veloso. Peço-lhe para trocar e ele diz que não. Ironia, ele é afastado da convocatória.

É apanhado no doping e entra o Bandeirinha, não é?
Isso mesmo. Fico eu com o 10, por tudo aquilo que disse anteriormente, sobre o mítico jogo em Estugarda e o Sporting, então o meu clube. É então que o Futre vem ter comigo e pede-me delicadamente para trocar o 7 pelo 10. Atenção, delicadamente. Ele pediu, não exigiu. A forma como ele se dirigiu a mim fez-me entregar-lhe o 10. Eheheh, isto é assim ò Rui.

Muito obrigado por tudo, que conversa.
Não queres jantar cá? Janta aqui pá.

Queria muito, mas tenho mesmo de apanhar o comboio.
Vá, lá vamos nós outra vez ao Eusébio dos Frangos.

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