Vítor Pereira. “O Hagi ainda hoje me pergunta ‘ó Vítor, e aquela expulsão?'”

Mais You Talkin' To Me? 01/29/2021
Tovar FC

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Vítor Pereira. “O Hagi ainda hoje me pergunta ‘ó Vítor, e aquela expulsão?'”

Num jogo de futebol de um país evoluído, o árbitro é o elemento neutro, o homem que comanda todos os outros, que segue as leis e dita o comportamento dos jogadores e treinadores. É o caso de Inglaterra, em que os árbitros actuam no sentido pedagógico: sempre que assinalam falta, explicam o porquê aos mais discordantes.

É verdade que alguns jogadores discordam, torcem o nariz, fazem caretas, resmungam entre dentes “fuck off” ou “fucking prick”, mas a esses o árbitro nem sequer dá hipótese de pôr o pé em ramo verde. Chamam-nos à parte (obrigam-nos é a palavra certa) e explicam a situação. Verbal e mimicamente, tipo “fizeste uma falta ali e outra ali, para a próxima não há desculpa e vês amarelo”. À terceira leva mesmo o amarelo, sem escapar a novo discurso de contenção. São, digamos, os embaixadores da paz.

Em Portugal, é tudo ao contrário. Cá o árbitro apita, ouve das boas e vai atrás
dos jogadores para lhes mostrar cartão amarelo. Impera a má educação com
alguma falta de autoridade de quem de direito. Há raras excepções. A UEFA está
atenta e selecciona os melhores. Em 1980, António Garrido. Em 1988 e 1992, Rosa Santos. Em 2000, Vítor Pereira. Em 2004, Lucílio Baptista. Em 2012, Pedro Proença. Favorito para a decisão de Kiev, depois da boa nota na final da Liga dos Campeões em Maio último, entre Bayern e Chelsea, o árbitro português tem amanhã o terceiro teste do Europeu, precisamente em Kiev no Itália-Inglaterra. No dia 24, portanto. Há 12 anos, Vítor Pereira faz história num jogo com a Itália, também nos quartos-de-final, este com a Roménia. Ele conta-nos tudo, e sem apitar uma única vez.

Boa tarde, Vítor Pereira. Vimos por este meio fazer-lhe um teste de memória sobre o Euro-2000.
Diga lá então, estou preparado.

Como correu o Jugoslávia-Eslovénia?
Antes de mais, quero dizer que foi um dos melhores jogos internacionais a que assisti. A Eslovénia estreava-se nesse tipo de competições e entrou bem. O Zahovic assinou o 1-0, o Pavlin, que iria para o FC Porto, o 2-0 e o Zahovic voltou a marcar. Aos 57/58minutos havia 3-0. No instante seguinte mostrei o segundo amarelo ao Mihajlovic e expulsei-o. Com dez, os jugoslavos chegaram ao empate. Essa semi-reviravolta teve o cunho do Drulovic. Não só marcou o 3-2 como ainda assistiu o Milosevic para um dos golos, não me lembro agora qual.

O Mihajlovic protestou?
É assim, refilou a caminho do balneário mas nada de mais. Mostrei-lhe o vermelho e nem sequer havia dúvidas. Bateu num esloveno sem bola.

Jugoslavos e eslovenos, ora aí está uma mistura pouco recomendada naqueles tempos de recém-independência. Sentiu essa rivalidade?
Em relação à complexidade do jogo, já estava habituado. No Mundial-98 apitei o
México-EUA. Na qualificação para o Mundial-2002, o Israel-Áustria, em que muitos austríacos recusaram jogar, pelo clima de tensão que se vivia em Israel [um avião russo caiu no Mar Negro, depois de atingido por um míssil]. Mas Jugoslávia e Eslovénia, sim, havia a tendência para pensarmos isso, mas não tive problema nenhum durante o jogo. Aliás, lembro-me de falar com o Drulovic e o Zahovic antes e depois do jogo. Eles deram-me os parabéns e eu retribui, consciente das suas exibições com golos e tudo. Quantas vezes vemos aquilo? Dois jogadores “portugueses”, digamos assim, a marcar? Foi uma tarde em cheio.
Futebol de ataque, golos bonitos e a minha nota foi boa. Tanto assim é que ainda apitei um outro jogo da fase de grupos, o Itália-Suécia.

Que ganhou a Itália por 2-1.
Exacto, com um golo do Del Piero muito, muito perto do fim. Nessa mesma noite,
um caso curioso no outro jogo do grupo, entre a Bélgica e a Turquia. O árbitro dinamarquês Kim Milton Nielsen lesionou-se e quem o substituiu foi o Günter Benko, da Áustria. Ganhou a Turquia, com dois golos de Hakan Sükür, que ainda expulsou o guarda-redes deles, o do Sporting (…) De Wilde. A Bélgica foi eliminada na primeira vez que um anfitrião caía na fase de grupos. Agora foi a vez da Polónia e da Ucrânia, não é?

Mas então o Vítor Pereira apitou novamente a Itália nesse Euro?
Sim, com a Roménia. Nos quartos-de-final. Aí foi um jogo mais sério, mais duro. Foi no mesmo dia do Portugal-Turquia [2-0] mas à noite. Em Bruxelas.

Já expulsara o Mihajlovic, nesse dia coube-lhe o Hagi. É um craque a mostrar vermelhos?
O Hagi, o Hagi… Havia muita conversa à volta dele porque aquele torneio significaria o seu adeus internacional. Se bem me lembro, a Itália resolveu o assunto na primeira parte [golos de Totti aos 33’ e Inzaghi aos 43’] e limitou-se a gerir na segunda.

Foi aí que expulsou o Hagi?
Exactamente. Com dois amarelos. E devo dizer que errei no primeiro. A sua entrada sobre o Conte foi dura mas nunca pensei que tivesse sido tão duuura. O Conte foi substituído imediatamente [por Di Biagio, aos 56’] e não jogou por seis meses, veja lá bem. Não satisfeito com isso, ele fez-se ao penálti um ou dois lances depois [59’] e mostrei-lhe o segundo amarelo.

Estava possuído? O Hagi, claro.
Não sei, não sei.

Mas ele criticou-o bastante na conferência de imprensa.
Foi a emoção do momento, não? Ainda há uns meses, já este ano, estive na Roménia e encontrei-o. Costumamos falar na boa nestas ocasiões. E ele pergunta-me sempre “ó Vítor e aquela expulsão?”, com um sorriso malandro. Ele sabe quem estava certo e quem estava errado.

Já agora, não posso deixar passar que o Vítor Pereira também está ligado à expulsão de Köhler no último jogo internacional da carreira dele.
E sabe uma coisa? Nem sabia desse pormenor. A final da Taça UEFA 2002/03,
em Roterdão. Frente a frente, o Feyenoord do Van Hooijdonk e o Borussia Dortmund do Köhler. Perto da meia hora, o Köhler derruba o último homem [Tomasson]. Penálti e expulsão. Sabe o que ele fez?

Quem, o Köhler?
Sim, o Köhler.

Nem ideia.
Levantou-se, viu o cartão, deu-me um passou-bem, disse-me “é justo” sobre o vermelho e foi-se embora. Foi sensacional, quer dizer, não foi sensacional vê-lo sair daquela maneira. É o Köhler, não é? Internacional alemão com anos e anos de futebol, mas quero dizer… Foi uma expulsão memorável pelo discernimento do jogador. E aí soube que tinha sido o seu último jogo. Houve…

Desculpe interromper, mas e o penálti?
Foi o Van Hooijdonk, é preciso dizer mais?

Nope. Dizia antes de o interromper.
Ah sim, houve outro caso parecido com o do Köhler.

Então?
Com o Ricardo Gomes, do Benfica, na final da Taça de Portugal com o Sporting, em 1996.

Ah sim?
Era o seu último jogo, mas fez um penálti indiscutível.

Novamente penálti e vermelho?
Pois, as regras assim o dizem quando o infractor é o último homem. O Ricardo
puxou as meias para cima e saiu do relvado sem problema nem drama.

Só para acabar, e já que saímos da esfera do Euro-2000.
Outra expulsão, não me venha com outra expulsão.

Desta vez é um amarelo, veja bem.
A quem?

Ao Cantona.
Huuuum.

No Benfica-Manchester United de homenagem ao Eusébio pelo seu 50.º
aniversário.

Ah, já me lembro. Sim, sim, o Cantona. Foi à tarde, na Luz. Primeiro, um jogo de veteranos nacionais, como Carvalho, Humberto Coelho, Alves, Seninho, Torres, Shéu e Eusébio, contra os internacionais. Estavam lá Pfaff, Milla, Kempes, Camacho – veja lá bem como depois ele voltou lá, hã? –, Bobby Charlton, Rivellino, Neeskens. Uma série de craques. E depois o Benfica-Manchester United.

E o amarelo ao Cantona? Aquilo até era um jogo de homenagem.
Bem sei, bem sei, mas contive-me, hein?!

A sério?
À primeira, fechei os olhos, deixei passar.

Falta do Cantona?
Sobre o Fernando Mendes.

E a segunda?
Sobre o Hernâni. Aí não podia haver contemplações, senão ele ainda ia por aí fora
e não podia ser.

Mas sabia da estreia do Cantona?
Desse pormenor em concreto, não. O Cantona ainda não era o Cantona [campeão
inglês pelo Leeds em Maio 1992, o mau feitio de Cantona contra o treinador Howard Wilkinson obriga-o a ir provocar problemas para outro lugar; Alex Ferguson contrata-o e estreia-o oficiosamente nesse 1 Dezembro 1992].

Pois, era a sua estreia pelo United.
Está a ver? Ainda por cima eram os anos do Rei, não é?

in jornal i, Jun 2012

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