Júlio. ‘Devo ser o único jogador que rescindiu duas vezes o contrato com o Porto’
Júlio é um personagem. Dos bons. Fala à vontade, ri-se de alguns episódios, arrepia-se com outros e chora com um particular. Assim, de repente, quem é o Júlio? Pois bem, Júlio é um jogador da bola como poucos. Para início de conversa, é o autor do primeiro golo da Supertaça portuguesa.
Aquilo é trigo limpo, farinha amparo, tipo pim pam pum: o árbitro Silva Pereira apita para o início, Taí corre pela direita e cruza para o encosto de Júlio. Um-zero para o Boavista ao Porto nas Antas antes de concluído o primeiro minuto. Como é que o Boavista está aqui na Supertaça 1978-79? Boa pergunta, caro leitor. Como vencedor da Taça de Portugal, vs Sporting. Um-um na final do Jamor, golo de quem? Júúúúúúlio. No dia seguinte, joga-se a finalíssima no Jamor. Escusado será dizer quem fixa o resultado (1-0).
Se isso não chega, calma, muita calma. Há mais, muito mais de onde veio. Júlio é um personagem sem igual. Em toda a carreira, joga em seis clubes de 1.ª divisão entre Porto, Boavista, Varzim, Vitória SC, Portimonense e Salgueiros. E deixa a sua marca em todos eles, é um facto histórico. Seis clubes é dose. Sobretudo porque gasta (no bom sentido, atenção) oito épocas no Porto. Os restantes cinco clubes representam uma fatia menor (sete anos).
Se isto ainda não chega, calma, muita calma. Há mais, muito mais. Em Dezembro 1980, o relato é este: segunda vitória seguida de Portugal e o Mundial de Espanha ali tão perto. O 3-0 sobre o Israel, “repescado” da zona asiática, coloca a selecção no topo do grupo 6 de apuramento e cria-se logo a ideia de uma qualificação fácil, até porque os dois primeiros apuram-se directamente. Humberto Coelho bisa e dedica os golos a Artur Correia, em recuperação após um ataque epiléctico que o deixa às portas da morte. Já Júlio, do Boavista, tem um azar tremendo. Ao esbarrar contra o preparador físico José Falcão, durante o aquecimento, fica a sangrar do nariz e adia a estreia na selecção. Quê?
Bom, já chega de interlúdio, passemos a bola ao Júlio. Ele resolve.
Boa tarde Júlio, tudo bem?
Tudo em forma, obrigado.
A sua história dá um filme.
Ou um livro.
Isto são só episódios do arco da velha.
E isso é só o que se sabe (e começa a rir-se). Conte lá.
Não, conte é o Júlio. O primeiro golo de sempre na Supertaça.
Desse golo em concreto, lembro-me pouco. Já foi há mais de 35 anos. Nem desse nem do 2-0. Acabámos com nove e ganhámos 2-1 ao Porto, nas Antas, e sabe a melhor?
Errrrrr…
Os adeptos do Porto não nos deixaram levantar a taça. O capitão Artur não pôde passar na bancada central. Paciência, campeões sem taça. Só a recebemos no Bessa uma semana depois ou assim.
Ainda por cima, o Júlio vinha do FC Porto.
Pois, aquilo deve ter irritado os adeptos. Um ex-jogador marcar dois golos, e nas Antas. Foi como espetar uma lança em África.
Como é que se sai assim do Porto para o Boavista?
Comecei nos juvenis do Ramaldense e cheguei ao Porto para os juniores. Lá, fiz-me campeão nacional. Ganhámos ao Benfica na final. O Benfica de Jordão, João Alves e Shéu. A selecção nacional, vá. Subi aos seniores com 17 anos e assim me mantive até aos 24. Depois, chegou José Maria Pedroto.
E?
E eu pedi a rescisão.
Então?
Não dava, o meu feitio chocava com o dele. Ele tinha duas caras. Disse-lhe isso. Na cara. Então ò Rui, há uma digressão no Brasil e quatro/cinco jogadores não regressam a Portugal com a equipa. Diz-me ‘és o melhor do mundo’ e, de repente, no jogo seguinte, não contas para ele. Vais para a bancada enquanto os outros jogam? O que diz o Rui disto?
É injusto.
Pois é, muito. Outra: sou suplente num jogo com a Académica. Ao intervalo, 0-0. ‘Vai lá para dentro e resolve’, disse-me ele. E resolvi, fiz o 1-0 e o 2-0. No jogo seguinte, nem convocado fui. Rui, isto é assim: Pedroto é um dos melhores treinadores que vi. Sem dúvida. Como homem, não valia nada. É a verdade. Tinha muitos interesses instalados e as portas estavam fechadas para mim.
E foi para onde?
Varzim. Foi a melhor coisa que fiz. Assinei pelo Varzim e marquei 18 golos. Essa época, ficámos em 10.º lugar e chegámos às meias-finais da Taça de Portugal. Fomos eliminados pelo Sporting, na Póvoa, num jogo em que o Keita parte a perna ao Festas de propósito. Foi ali à minha frente, ele não foi à bola.
Boavista, a seguir?
Ainda há o interesse do Benfica. O senhor Romão Martins, chefe do departamento de futebol, fala comigo. Primeiro por telefone, depois vai ao hotel da selecção. Nesse parêntesis, falo com o Humberto Coelho, que já era do Benfica e estava comigo na selecção. Como ainda não havia nenhum Jorge Mendes, tinha de perguntar a alguém o que fazer. Muito bem, ele ajudou-me. Somos amigos e até jogámos no mesmo clube, o Ramaldense. Quando o senhor Romão Martins vem ter contigo ao hotel, com toda aquela papelada para assinar, os números não batem certo.
Que números ao certo?
A divergência, acho, tem a ver com o aluguer do apartamento. Quem paga, quem não paga. Enfim, grande embrulhada. Não assinei.
E depois?
Um belo dia, estou a entrar em casa e deparo-me com o saudoso Domingos Marques, do Boavista. ‘Venho aqui para assinar contrato contigo, a mando do major Valentim Loureiro.’ Falámos, discutimos isto, aquilo e assinei mesmo. Quando o telefone toca, o senhor Romão Martins já tem a situação do apartamento clarificada. Disse-lhe ‘olha, você teve a faca e o queijo na mão. Agora, quem tem a faca na mão sou eu e vou cortar o queijo à minha maneira.’ Fui para o Boavista e passei por grandes momentos, com a conquista da Taça de Portugal, no tal 1-0 ao Sporting. Depois, a Supertaça no 2-1 nas Antas. E ainda as competições europeias. Fui o primeiro boavisteiro a marcar três golos [ao Sliema Wanderers, de Malta, num 8-0 no Bessa] [depois de Júlio, hat-tricks de Artur ao OFI Creta e Jimmy ao Dínamo Tbilisi].
E ainda foi chamado à selecção?
Verdade. Na primeira vez, com a Itália, em Génova [Setembro 1980], fui para o banco e nem entrei. De todos os suplentes, eu era o único sem qualquer internacionalização. E o que faz o Juca? Não me faz internacional. Chama-me para um particular e não me mete? Bem, adiante. Chamou-me outra vez, para um jogo com Israel, na Luz [Dezembro 1980]. Estamos a ganhar quando o Juca me diz para ir aquecer. Lá vou, todo contente. Corri pela linha lateral, dei a volta à bandeirola de canto e continuei a correr pela linha de fundo. Na repetição desse exercício, choco com o preparador físico José Falcão. Como não sabia que ele estava a correr atrás de mim, assim que me virei, dou com o nariz nos óculos dele. Parto a cana do nariz e começo a sangrar.
Isto vai dar raia, não vai?
E que maneira ò Rui. O Juca vê aquilo e diz que não posso entrar com sangue. Nunca mais lhe falei. Quem entra é o Manuel Fernandes. Por essa altura, já estou no balneário a levar uns agrafos do massagista Mário Belo. Terminado o serviço, fui-me embora e nunca mais voltei à selecção. É uma tristeza enorme nunca ter sido internacional.
E depois, desculpe o estilo repetitivo?
Voltei ao Porto, na ressaca do Verão Quente. E pedi outra rescisão de contrato.
Então, porquê?
Quando o Pinto da Costa foi eleito presidente [Abril 1982], trouxe o Pedroto. E não dava. Mesmo. Devo ser o único jogador que rescindiu duas vezes o contrato com o Porto. Às vezes, ouço coisas de jogadores daquela época sobre o Pedroto que me fazem comichão. Uma vez, vi-o já debilitado, numa fase adiantada da doença. Estou a falar consigo e arrepio-me todo (…) Não consigo, já estou a chorar.