Bobó. “Conheço o dono do PSG e ele dizia-me ‘ainda compro o Cristiano e o Messi'”
O dérbi do Porto mexe muito com o sistema nervoso. Do campeonato e dos portuenses. É sempre assim e mais ainda este sábado à noite. Vai daí, encontrámos Bobó em campo neutro, no El Corte Inglés de Gaia. Bobó, então? Um hat-trick de razões. Primeiro, Bobó estreia-se na 1.ª divisão num Porto-Boavista em 1982. Segundo, Bobó é um produto do Porto, campeão júnior e tudo. Terceiro, Bobó faz-se jogador a sério no Boavista, com seis épocas de intenso fulgor e 55 cartões amarelos mais sete vermelhos à mistura. À nossa frente, Bobó é o mais tranquilo que se possa imaginar. Mansinho, mansinho. Até pede torrada e chá. Música maestro.
Chegaste em que ano a Portugal?
Em 1979, no dia 14 julho. Isso não se esquece.
Vieste com os teus pais?
Vim sozinho, através de um padre. Ele dava aulas numa universidade da Guiné-Bissau, viu-me a jogar e disse-me ‘tens jeito para a bola, queres ir para Portugal?’
E tu?
‘Quero’.
E que tal?
Nunca esperava que ele diligenciasse tudo. No próximo encontro, ele pergunta-me se já falei com os meus pais e eu ainda não tinha falado com ninguém.
E falaste?
Aí sim, falei. O meu pai disse-me ‘desde que não deixes os estudos, podes ir’. Já a minha mãe é que não deixou.
Uyyyy, e agora?
A minha mãe estava mesmo naquele do ‘não vais, não vais e não vais’. Até que fui falar com um tio meu, um benfiquista ferrenho, que ainda hoje só consegue comer depois de um jogo, e ele foi falar com a minha mãe. Sabes o que se passou? Nem o meu tio convenceu a minha mãe, ahahahah.
Que saga, como é que acaba essa história?
Um dia, o meu pai foi mesmo naquela da força. ‘Epá, tu vais; se fosses menina, mandava a tua mãe; como és homem, quem manda aqui sou eu e tu vais’.
Assunto resolvido.
Nem por isso, a minha mãe ainda deu luta mas eram três contra um. Era a minha vontade, a do meu pai e a do meu tio contra a da minha mãe. Todos queriam sossegar a minha mãe, até porque não vinha para aqui sem nada nas mãos. Pelo contrário, tinha colégio e tudo. Aquele ali verde ao fundo ò [Bobó vira-se para trás e aponta, não há como enganar].
Como se chama?
Colégio de Gaia, é na Quinta do Trancoso. Na altura, os filhos do papá estavam todos ali, até os filhos do presidente Nino. Curiosamente, o Nino viu-me lá e perguntou-me ‘de onde é que és?’. E eu ‘sou da Guiné.’ E ele, ‘o teu pai, quem é?’ E eu, ‘é um mero cozinheiro’. E ele ‘quem te paga o colégio?’ [silêncio]
E quem é que pagava?
Na altura, o Porto. Ahhh, não, não, era o Vilanovense. Fui fazer testes ao Porto e marquei dois golos. Pensei que ia ficar, mas o ? que era ? Recusou-me: ‘o plantel está cheio, não posso admitir mais jogadores na equipa’.
Imagino o teu desespero.
Sai de lá a chorar, ‘dassss. Então vim até aqui para prestar provas, marquei dois golos, dei outro a marcar e agora vou sair sem futuro?’ Coincidência das coincidências, estava lá um senhor, porteiro da Associação de Futebol do Porto, que me viu triste e perguntou-me o que me tinha acontecido. Quando lhe contei, sugeriu-me ir para o Vilanovense. Só tinha de apanhar o 36. Só que pensei que o Vilanovense fosse longe e não tinha dinheiro para essas andanças. Então disse-lhe que ia mas era dedicar-me ao colégio. Ele perguntou-me ‘qual colégio?’ e riu-se com a resposta.
Ai sim?
O Vilanovense era ao lado do colégio, cinco minutos a pé.
Maravilha.
Mesmo assim, deu-me sete escudos e 50 centavos para apanhar o 36 da Baixa do Porto para o campo do Vilanovense nesse mesmo dia.
E tu foste?
Ah pois fui. Cheguei lá antes do treino e comecei a bater bolas contra um muro: ora parava-a com o pé direito, com o peito ou com o pé esquerdo. Os directores começaram a ver e o engenheiro ? Começou a fazer-me a perguntas. ‘Ò moço, anda cá, onde é que estás? Queres jogar aqui, é?’ Disse-lhe tudo e acertámos tudo naquele instante. No fim do treino, ele deu-me boleia até ao colégio e foi aí que me disse que o clube até pagava o colégio. Dito e feito.
Começaste logo a jogar?
Logo, logo. Quatro meses depois, Porto, Benfica e Sporting andavam interessados em mim.
E tu?
Escolhi o Porto.
A sério?
Jogava na filial do Porto na Guiné-Bissau, é o clube da minha terra e cresci a vê-los jogar. Quando ia à sede da tal filial do Porto da Guiné, ficava a olhar para os posters de Gomes, Gabriel, Freitas e sonhavam em jogar com eles. Agora, de repente, estava ali tão perto deles. Ainda me lembro do primeiro treino com eles. A relva.
A relva?
Não havia relvados na Guiné, os que havia era de capim. Deitas-te no capim e começas a coçar-te todo. No relvado, é tudo diferente. Cheguei lá às Antas, deitei-me na relva e nada de comichão. Disse para mim mesmo ‘dassss, tenho que ficar aqui, tenho que jogar aqui’. Estava tão contente com tudo aquilo que nem dormi nessa noite.
Mas já eras sénior?
Júnior, ainda. Nós treinávamos no pelado, só íamos ao relvado uma vez por semana para um treino conjunto com os seniores, com os Gomes, os Tibis, os Fonsecas, os Frasquinhos desta vida.
Foste campeão nacional júnior?
Foi meu o golo do título, com o Sporting, em Alvalade.
Nãããããããã.
Empatámos 2-2 nas Antas, ganhámos 1-0 em Alvalade.
Como é que foi o teu golo?
Um remate fora da área. Estava lá o Bandeirinha e o nosso capitão era um indivíduo alto chamado Félix, que nunca mais soube dele. Mas foi esse Félix quem insistia para que eu rematasse à baliza sempre que pudesse.
Tu rematavas pouco, era?
Só rematava com convicção, nunca rematava por rematar. Naquele dia, em Alvalade, rematei com convicção. Muita até, foi um golo de bandeira. Nunca mais vi esse golo, que depois passava nos reclames do Totobola. Só que perdia-o sempre, ahahahahah. Às vezes, chegava a um café e diziam-me ‘deram agora a tua bomba’. Nunca mais vi. Nem há na internet, já procurei.
És campeão de juniores. E agora?
Subo aos seniores. Eu e mais cinco. De nós os seis, só dois se mantém na equipa principal: eu e o Bandeirinha. Os restantes quatro são emprestados.
E depois, e depois?
Faço um ano de Porto e começou aquela confusão do Verão quente, em 1980. Quando a coisa acalma e há o regresso do Pedroto, ele diz-me logo que sou a terceira opção para aquele lugar e queria que fosse rodar.
E tu, confortável?
Só queria jogar, jogar e jogar.
Foste para onde?
Águeda. O treinador era o Magriço José Carlos e o guarda-redes era o Justino, agora treinador de guarda-redes da selecção portuguesa.
Correu bem?
Na apresentação, o José Carlos disse-me ‘epá, foste contratado pela direcção e eu já tenho dois jogadores para o teu lugar; se quiseres ficar, ficas; mas já tenho jogadores para o teu lugar’.
Terceira opção, outra vez?
Aquilo criou uma revolta em mim e convenci-me que ele ia ter que engolir o que disse.
De que forma?
Nos primeiros treinos, às terças-feiras, havia corridas de 14 km e eu era o primeiro do pelotão, sempre. Então vinha do Porto e não ia jogar no Águeda?, era o que faltava. Chegou o primeiro jogo e eu no banco. ‘Vá lá, já sou a segunda opção’. À segunda jornada, vou para o banco de novo. É um jogo com a Académica e as coisas correm-nos mal. Durante a segunda parte, o José Carlos diz-me para aquecer. Levantei-me, dei um pico e disse-lhe ‘já está’. Ele perguntou-me ‘já está o quê’. E eu ‘já estou quente’. E ele, enervado, ‘aquece caralho’. Lá andei eu às voltas até que entrei e nunca mais saí da equipa.
Nunca mais?
Fiz golos e ajudei o Águeda a ganhar a 2.ª divisão.
E o José Carlos?
Queria que eu continuasse, mas aí voltei ao Porto. É o ano do regresso do Pedroto e marquei dois golos fora, um em Penafiel, outro em Espinho. Dois 1-0 para o Porto. É também o ano em que o professor Neto começa a fazer estatísticas dos jogadores e, durante uma reunião, diz-nos ‘o Bobó é jogador mais eficiente do plantel: dois remates à baliza, dois golos’. Ahahahahah, e o Gomes, que é muito meu amigo ainda hoje, aproveita a dica e diz-me ‘ò mancha, ’tás a fazer muito golo, vê lá se não vais é de pinote’.
Ahahahahah.
Essa foi uma boa época no Porto. Só não gostei do que aconteceu depois, porque fui moeda de troca do André. Ele foi para o Porto e eu fui para o Varzim.
Na 1.ª divisão?
Acabámos por descer nesse ano. Na época seguinte, o António Morais [adjunto de Pedroto] vai para Guimarães e fui novamente moeda de troca, agora do Paquito e do Laureta. Aí sim, fiz uma época espectacular: fiz tantos tantos tantos jogos e ainda marquei quatro golos. E eu que não sou de marcar golos.
Gostaste do Vitória, é isso?
Adorei essa época. Tenho grandes recordações desses tempos. Lembro-me de um jogo em Chaves, que jogo pá. Certamente o jogo em que mais cansaço acumulei. Chovia a potes, o campo era difícil por natureza e foi uma luta o tempo inteiro. Às tantas, há uma jogada entre mim e o Tozé, pau, pau, pau, toca aqui, toca ali, passe, passe, passe, chego à linha de fundo, dou um cacete na bola e caio. Estava tão cansado que nem me queria levantar depois desse lance. Há mais memórias do Vitória.
Conta.
Um jogo na Luz em que fomos roubados indecentemente. O Miguel, aquele central que foi para o Sporting, pára a bola no peito e o José Guedes apita penálti. Eu estava ali e vi. Aliás, vi duas coisas: foi bola no peito e fora da área. Penálti, foooooogo. Foi um jogo especial, com muita gente do Vitória na Luz. Foram 19 autocarros de Guimarães para a Luz e começámos a ganhar com um autogolo do Oliveira. Só que depois o Benfica virou e acabou 3-1. Um dos golos é esse penálti manhoso e um outro é do Wando, que era muito muito muito rápido.
E em Guimarães, até fervia não?
Nesse ano, ninguém passou em Guimarães. Ganhámos 2-1 ao Porto, com dois golos do Cascavel. Ganhámos ao Benfica por 2-0 ou 2-1. E ganhámos 4-3 ao Sporting. Nesse dia, estava no banco mas vibrei com os golos, um deles é aquele fantástico livre directo do N’Kama. Na baliza, Damas.
Foste internacional pelo Vitória, não foste?
Quatro vezes pelo sub-21, no Torneio Toulon.
E Portugal acabou em?
Quarto lugar, era a equipa da dupla Juca-Marinho como seleccionadores. A equipa tinha Samuel, Caetano, Chico Faria.
E à selecção AA, alguma vez foste convocado?
Nunca fui convocado, mas, antes do Mundial-86, o José Torres perguntou-me se estava disponível.
E?
Disse-lhe que sim.
E?
Nunca mais se falou assunto. Os jornais também falaram disso, mas nunca me manifestei muito. Até porque era internacional pela Guiné-Bissau. Até fui capitão e tudo. Joguei umas quantas Taça Amílcar Cabral, um torneio para os países da África Ocidental, e fui eleito o melhor jogador em 1983, ano em que chegámos à final, perdida para o Senegal.
Fecho o parêntesis da selecção e volto ao Vitória. Acaba a época e?
Volto para o Porto. É o Verão em que o Sporting vai buscar Jaime Pacheco mais Sousa e o Porto responde com Futre. Acertei tudo com o homem, com o presidente, e aceitei assinar por mais três anos. No dia em que era suposto assinar, uma sexta-feira, aquilo atrasou-se e estava quase na hora da minha última camioneta, às 20 horas. Então dizes-lhe para baterem o contrato à máquina e deixarem-no na secretaria que eu assinava na segunda-feira. Deixei passar duas semanas e, quando voltei, já queriam mudar o acordo. Aí passei-me com ele e disse-lhes que não ia jogar ali de graça.
E eles?
Alegaram que eu tinha um contrato e tinha de o cumprir. Disse-lhes que não, que havia alternativas. Só que eles mantiveram a sua e até me chegaram a dizer ‘não troques um elefante por uma formiga’ ao mesmo tempo que abriram as portas para conversações com outros clubes.
Que cambalacho.
Nesses dias, houve gente que soube desta confusão e falaram comigo.
Quem?
O presidente do Chaves, o presidente do Braga e o presidente do Marítimo. Eles do Porto ligavam-me para saber das novidades e diziam-me ‘não troques um elefante por uma formiga’. Um dia, enchi-me daquilo e disse-lhes ‘a formiga dá-me aquilo que o elefante não me dá, vou-me embora’. Ahahahahah.
E foste?
Para o Marítimo. A oferta do António Henriques era boa, ele falou com o Porto e fechou-se o acordo.
Voltaste ainda ao Porto?
No dia em que fui lá buscar a carta, antes de me apresentar no Marítimo, subi e vi umas botas bonitas da Adidas. Perguntei se podia levar umas e eles ‘se não quiseste ficar aqui, não há chuteiras para ti’. Agradeci, desci as escadas e voltei a subi-las. ‘Pega nas chuteiras e mete-as no cu’.
Ahahahahahahah, disseste tu?
Duas vezes. Pega nas chuteiras e mete-as no cu. O Bandeirinha até ouviu aquilo tudo e quis acalmar-me.
E tu?
Que se lixem, eu tenho que os abafar, não posso guardar isto para mim.
Marítimo, aí vamos nós. Marcaste de novo ao Sporting em Alvalade, não foi?
Ganhámos 1-0, diziam que a terra ia tremer e não sei o quê.
Porquê?
Foi um golo de longe, ao Damas.
Ficaste muito tempo na Madeira?
Dois anos. Acabou por causa de um susto no avião.
A sério?
Natal, época de férias. Vim para aqui com a família. E depois voltámos ao Funchal. Esse regresso é que marcou a minha saída. No avião, em representação do Marítimo, estava eu mais Paquito, Quim e João, o massagista. O avião faz-se três vezes à pista e não consegue aterrar por causa do temporal. Tenta-se então Porto Santo. Nada, também. Acabámos por aterrar nas Canárias. Durante esses sustos todos, só dizia à minha mulher ‘se chegarmos, nunca mais viajamos juntos’. Aquilo era uma choradeira interminável: as minhas filhas choravam, a minha mulher chorava e a malta toda assustada. Quando cheguei às Canárias, disse ‘não há dinheiro que pague a minha vida’ e decidi sair do Marítimo no final dessa época.
Segue-se Estrela?
Isso, Estrela. No Verão, o João Alves telefona-me e chama-me para o Leixões, só que já tinha dado a minha palavra ao Estrela. Curiosamente, o Alves sai do Leixões e chega ao Estrela. Ahahahahah.
É o destino.
Eu chego ao Estrela e ‘dasssssss, ’tou lixado’.
Então?
É só médios ofensivos.
Quem?
Nélson Borges, Basaúla, Paulo Jorge e até o Rebelo jogava a médio ofensivo. Num treino de pré-época, o Alves vira-se para mim e diz-me ‘epá, Bobó vais jogar a médio defensivo’.
E tu, fixe?
Nada fixe, não queria jogar a médio defensivo. O meu futebol era ofensivo, só que passei a pré-época a jogar a médio defensivo e foi assim que comecei a época oficial, num jogo com o Nacional.
Correu-te bem, imagino.
Fiz tudo bem e ainda marquei um golo de livre, ahahahahah. Nunca mais saí. Foi assim que começou a minha aventura como médio defensivo.
Essa equipa do Estrela é qualquer coisa.
Só craques: Pedro Xavier, Caetano, Barny, Duílio, Paulo Jorge, Rebelo, Ricardo Lopes. Passámos 11 jogos seguidos a pontuar e ganhámos a Taça ao Farense, na finalíssima.
Do que te lembras desse dia no Jamor?
De ser expulso, ahahah. O Titi deu-me uma cotovelada e não me contive.
Respondeste à letra?
Fui ter ele, agarrei-o pelo pescoço e empurrei-o. Vermelho, claro.
Depois a festa.
É quando aparece o major.
Hein?
O major Valentim apareceu lá e perguntou-me se queria ir para o Boavista.
Assim, sem rodeios?
Já o tinha feito uma vez, quando eu ainda jogava no Marítimo. Foi no aeroporto e ele perguntou-me de uma forma desinteressada. A meu ver, claro. Respondi-lhe também de forma desinteressada e nada se materializou. Ali não, ali foi diferente. A pergunta foi feita com mais querer.
E tu foste?
Fui eu e, como treinador, o Alves.
O destino, parte 2.
Foi quando voltei ao Porto.
Esse Boavista também estava a crescer.
Bastante, a crescer bastanta. Alfredo, Casaca, Barny, Frederico, Garrido, Marlon, Artur, Brtollazzi, Ricky, Ricardo Lopes, o do 2-0 na finalíssima da Taça de Portugal. O ambiente no Boavista era muito parecido como o do Estrela, a malta dava-se toda bem. Muito bem mesmo, era uma alegria constante. Aquelas viagens de autocarro eram um fartote, ahahahahah. Uma vez, o autocarro avariou na auto-estrada e o Hubart é que o arranjou.
Ahahahahah, só histórias. E no Boavista?
Tudo corria bem até que o Alves expulsou o major do balneário, num jogo em que até ganhámos. Depois de o expulsar com um ‘sai daqui’, disse-nos ‘vou-me embora’.
Segue-se quem?
Raúl Águas, depois Manuel José. O Manel é dos que mais me marcou, ele e o Alves. Quando jogava no Estrela, ele estava no Sporting e um indivíduo guineense perguntava-me se queria que ele falasse de mim ao Manuel José. Disse-lhe que sim, claro. Só que o Manel nunca chegou a dizer sim ou não. Então quando o nomearam treinador do Boavista, pensei ‘queres ver que vou ter de pedalar o dobro para jogar?’
E?
Criei um laço de amizade com o Manel, que ainda perdura.
Ele era duro?
Às vezes, descascava forte e feio em cima de nós. Era tramado, porra. Lembro-me que os jogadores tinham receio de serem chamados á pedra. Era mesmo assim, à pedra. Mas era um treinador especial. Como o Alves. E o Pedroto. O Pedroto tem uma comigo, que coisa.
Conta aí.
Foi a última vez que ele se sentou no banco, em Penafiel. Ele gostava muito de mim e queria mesmo que eu fizesse parte do grupo. Nesse dia, estávamos a almoçar e ele brincou comigo ‘Bobó, vais comer dois bifes; são dois bifes para o Bobó’. E eu papei-os, naturalmente. Até porque nunca pensei que fosse jogar. Na segunda parte, ele chama-me ‘aquece Bobó’.
Ahahahahah.
‘Eu mister?’. E ele ‘há outro Bobó aqui?’ Bem, eu de estômago cheio e a pensar como ia jogar assim. Nas instruções, antes de entrar, o Pedroto diz-me que vou jogar a ponta. ‘Não te quero a fazer maritangas, tu sais do drible e dá cacete; quando há flanqueamento do jogo, acompanha’. Entrei a medo e assim fiz: no primeiro flanqueamento, o Vermelhinho vai à linha do fundo, cruza e eu empurro para a baliza, 1-0. O Pedroto estava todo contente ‘estás a ver como é fácil?’ e eu ‘fácil o caralho, entrei todo cagadinho’. Isto para dizer que o Pedroto é especial no aspecto da motivação, como o Alves e o Manuel José. E esse Boavista do Manuel José foi bem para a frente.
Ainda bem me lembro daquela primeira jornada: Benfica 0 Boavista 1.
Golo do Casaca. O que sofremos nessa noite, era o Benfica do Eriksson e já não perdia em casa há uma série de jogos. Lembro-me perfeitamente do Caetano, que era um palhaço do caralho durante os jogos. Dizia-me ‘Bobó, aí vêm eles pá, parecem índios’ enquanto puxava o calção para cima, ahahahah. Joguei oito anos com o Caetano e fomos seis vezes à Europa.
Esse ano da vitória na Luz é o mesmo do 2-1 ao Inter?
Isso mesmo. No ano seguinte, 2-0 à Lazio com bis do Ricky. Há episódios de deslocações europeias memoráveis, como a viagem à Finlândia. Tinha sido operado ao joelho esquerdo e estava na fase inicial da recuperação de três meses. No primeiro dia do pós-operatório, já estava no meiinho e a rasgar. O Manuel José viu-me e levou-me para a Finlândia, ‘só para acompanhares a equipa, espírito de grupo’. No treino de lá, vou ao meiinho e rasgo aquilo tudo, a ir às bolas todas como se estivesse bem. O Manuel José pergunta-me se estou bem, digo-lhe que sim e o Dr. Agostinho passa-se: ‘tu estás bem da cabeça? Faltam-te três meses e 21 dias, a crosta ainda nem sarou’.
Xiiiiiii.
E eu ‘ò doutor, sinto-me bem, sem dores e estou aqui é para jogar’. Pronto, falei com o Manuel José e falou-se em jogar 15 minutos, meia-hora, vá.
Jogaste quanto?
Fui titular e saí aos 75 minutos, ahahahah. Na viagem de avião, o joelho até parecia um balão de tão inchado, mas aquilo normalizou em casa, com gelo, gelo, gelo e mais gelo. Adormeci a fazer gelo, ahahahah. Sempre fui um animal competitivo, só pensava em jogar. E como nunca fui de noitadas nem de alcóol, tenho um bom corpo.
Nada de noite nem de álcool?
Nunca bebi. Até porque sou muçulmano.
A sééééério?
Dos que cumprem jejum e tudo. Isso do Ramadão é uma questão psicológica. Só me vejo à rasca no primeiro dia, depois nem ligava à intensidade física dos exercícios nem ao consumo da água dos meus colegas no final dos treinos e tal.Ahahahah, estou agora a lembrar-me de uma época de jejum em que fomos jogar a Alvalade para a Taça de Portugal.
Bem, não me digas que é aquele jogo em que tiraste do sério o Bobby Robson?
É esse famoso jogo, sim. Na hora do almoço, eu sentava-me à mesa com os colegas mas não comia nada.
Que tratado.
O Manuel José ‘então não comes?’. E eu ‘não posso, estou de Ramadão’.
Imagino o Manuel José.
‘Bobó, se a gente não ganha esse jogo, tu sabes quando é que calças? Nunca mais calças comigo.’ Ganhámos 1-0, após prolongamento, e fiz um jogo do caraças. No final, o Manuel José não se continha: ‘se é para jogares assim, deves ficar sem comer o tempo todo’.
E o Bobby Robson o que é que te disse?
Descascou-me e o Sousa Cintra também. Li no Record do dia seguinte: ‘andava um assassino à solta em Alvalade’.
Fizeste muitas falta, foi?
Dei muita porrada. Quando o Sporting aparecia em superioridade numérica no meio-campo, pumba, fazia falta e matava a jogada. Os gajos passaram-se.
Viste o Bobby Robson depois? È que ele veio treinar o Porto.
Ahahahahah, encontrei-o aqui num centro comercial e ele reconheceu-me ‘ohhhhhhh Bobó’. Falámos um pouco.
Depois de eliminar o Sporting, o Boavista ganha a final a?
Dois-um ao Porto, golos de Marlon, Jaime Magalhães e Ricky. Já éramos grandes e queríamos ganhar em todo o lado, fosse Luz, Antas, Alvalade, Nápoles, Parma.
Turim.
Nem me fales nesse jogo com o Torino, passei o maior susto da vida com o Marlon. Ele levou um soco do guarda-redes e caiu inanimado. Nunca tinha visto uma coisa assim, só se via a parte branca dos olhos, assim, tá tá tá tá [Bobó abana o indicador sem parar]. Quando vi aquilo, fui-me abaixo e só dizia ‘o Marlon morreu, o Marlon morreu, o Marlon morreu’. Dei um pico para o banco e pedi ao Manuel José para sair. Perdi completamente a concentração e só me interessava saber o estado do Marlon.
Que episódio.
Há histórias assim. A verdade é que o Marlon recuperou e continua a ser um grande amigo meu. Até jogámos juntos no Arizona (EUA). Quando me pediram um extremo, pensei logo nele e telefonei-lhe. Voltámos a jogar juntos. Uma outra história europeia extraordinária aconteceu em Nápoles, quando os italianos entraram no hotel e passaram lá a noite. No corredor e tudo.
Nããããããão.
A sério, houve malta que não pregou olho. Eu durmo na boa, em qualqer circunstância. Podes atirar-me uma coisa à cabeça e podes disparar uma arma, não interessa: não vou acordar, ahahahahah.
E histórias do Jamor, tens mais?
Tenho uma péssima, a do 5-2 do Benfica. Nessa tarde, ninguém parava o Futre. Ainda quis pará-lo.
Deste-lhe uma.
Nem isso, ele fugia sempre. Mas ganhámos a Taça ao Benfica uns dois/três anos depois.
Mas aí o Manuel José estava no Benfica.
Isso mesmo, o nosso treinador era o Mário Reis. Que me fez a vida difícil.
Então porquê?
Passou-se uma coisa que marcou negativamente a nossa relação. No Boavista-Salgueiros da época anterior, há um lance em que a bola vai sair e eu protejo-a com o corpo. Ele atira-se contra mim, com falta, e ganha o lançamento. Pega na bola e faz o lançamento, comigo no chão. Como a queda foi perto do banco do Salgueiros, os suplentes todos começaram a rir-se na minha cara. Eu comecei a chamá-lo ‘ei Sá? Sá?’ e ele ‘vai-te foder, mas conheço-te de algum lado?’. Fiquei [Bobó arregala os olhos]. ‘Ai é? Tu vais ver’. Afastei-me do banco e disse ao Mário Reis ‘vocês estão a rir e daqui a pouco vão estar a chorar’. Se há coisa que me põe doido é a malta que faz falta e ainda diz ‘é bem feito’. Fico cego com isso e, naquela altura, disse a mim mesmo que o Sá não podia sair dali sem levar troco.
Ai ai ai, o que é que vem aí?
Encostei-me ao Sá, roubei-lhe a bola e apanhei-o bem. Senti mesmo o cotovelo a entrar aqui [Bobó mete a mão no nariz, de baixo para cima]. Ele caiu, eu também e fez-me assim [Bobó empurra violentamente].
E então?
Foi expulso, o Sá. Ali à beira do banco do Salgueiros, com o Mário Reis a protestar comigo. Eu não fui de modas ‘vai-te foder, treinador do caralho, não vês onde é que treinas, no Salgueiral’. Beeem, ele ficou vermelho de raiva. Quando chegou ao Boavista, vingou-se desde o primeiro dia com um um discurso ‘ah o Bobó é para manter a mística’.
E tu?
Pensei ‘dasssss, este já me está a pôr os patins’. Bati à porta do gabinete dele, entrei e disse-lhe o que me ia na alma: ‘estou aqui como qualquer outro jogador, não estou aqui para a mística; no dia em que sentir que estou a mais, vou-me embora; se o mister sentir que estou a mais, a porta por onde entrei agora é a mesma da saída’.
Paz?
Continuei sem jogar. O major perguntou-me ene vezes porque é não jogava e a minha resposta era sempre a mesma: ‘ò senhor major, pergunte ao mister, continuo a treinar como sempre’. Por isso é que fui-me embora no dia seguinte a essa conquista da Taça, o 3-2 ao Benfica no Jamor. Fiz parte do plantel e até fiz alguns jogos da Taça, mas nem sequer fui ao banco no dia da final. No meio dos festejos, avisei o mister da minha saída e embarquei para os EUA no dia seguinte.
E o Mário Reis?
Não sabia de nada, só sabia o major. Que até me tinha pago o último mês.
Foste para os EUA assim sem mais nem menos?
Joguei lá uns sete meses, depois fui para o Qatar, onde só estar três meses, com saudades da família em Portugal. Eles bem me queriam segurar, mas não deu. A minha vontade de voltar era mais forte.
Isso é quê?
Anos 90.
E já voltaste ao Qatar?
Já, já.
Imagino a evolução.
Quando cheguei a Doha, era basicamente deserto, o Hotel Pirâmide e pouco mais. Agora é aquilo muito preenchido e está a crescer mais, mais e mais. Vou lá de vez em quando, até porque sou amigo do Nasser, o homem que comprou o PSG. Em 2004, andei com eles os 30 dias do Euro. É um palhaço do caraças é o que é.
Ahahahahah. Foram ver muitos jogos?
Fomos a todo o lado, ele comprava aos 20 bilhetes por jogo e depois vendia os bilhetes. Fez muita massa.
Viram até a final?
Vimos juntos o Portugal-Grécia de abertura e o Portugal-Grécia da final. Pelo meio, vimos o Portugal-Inglaterra. Ele queria que ganhasse Inglaterra e eu puxava por Portugal. Ah caramba, cada golo equivaleu a um caldo na nuca que nem sonhas.
Nos penáltis, então, uiiii.
Quando o Ricardo tirou as luvas – eu conheço o Ricardo do Boavista –, disse ao Nasser ‘vai defender, vai defender’. E o Nasser ‘vai defender o quê, não vai defender nada’. E defendeeeu. Também puxava muito pelo Cristiano e ele fazia caretas. No ano passado, quando ele contratou o Neymar, liguei e disse-lhe ‘ò Nasser, fizeste uma boa compra, mas porque é que não compraste o Cristiano?’
E ele?
‘Ah, deves estar a gozar comigo; mas se fizerem muito barulho, ainda compro o Cristiano e o Messi’. É o que eu digo: um palhaço do caraças, mas é boa gente. Eu nem sabia que ele tinha tanto dinheiro. Um belo dia, estou eu na Guiné-Bissau e recebo uma mensagem dele a perguntar-me se quero ir ver o Porto-PSG ao Dragão. Respondo-lhe ‘se pagares o bilhete, até vou’. E ele, pumba, dá-me o bilhete. Fomos almoçar, vimos o jogo, fomos jantar. A malta a olhar para mim. O Pinto da Costa, o major, o Alves, todos a perguntarem-me de onde é que conhecia o Nasser. E eu nem sabia que ele era o dono do PSG, só conhecia pelo passado como jogador de ténis e director do canal televisivo Al Jazeera. Quando chegou ao fim desse jogo, o Nasser deu-me 24 mil euros. Foi a primeira vez que vi notas de 500 euros.
Para quê?
Para quê? ‘É para ti,és bom rapaz’.
Ahahahahahah. Por falar em dinheiro, o major alguma vez entrou no balneário e ofereceu dinheiro?
Ahhhh, ele fez isso muitas vezes. E também já entrou lá todo torto.
Como?
Um dia, perdemos 4-1 com o Chaves no Bessa. Um jogo incrível em que massacrámos o Chaves e eles, em contra-ataque, tau tau tau tau, 4-1. Chegámos todos tristes ao balneário e o major, que é canhoto, entra lá dentro e dá um valente pontapé a um caixote do lixo. O caixote bate no tecto e vai até ao lado lado do balneário. Depois vira-se contra a malta. O Manuel José defendia-nos, claro: ‘ei, major, fora daqui’. E ele ‘eu sou o presidente, eu mando em ti’ e o Manuel José ‘mandas em mim? Quero ver é se tens os colhões no lugar, fora daqui, já disse’. Ahahaha, era assim, às vezes era bera. E outras vezes [Bobó finta o vazio]
Então?
Era o último jogo do campeonato, em Braga, e o major não se dava com o Mesquita. Por isso, aumentou o prémio de jogo. Acontece que o treinador Raul Águas – isto foi antes do Manuel José, em 1991 – resolveu descansar alguns jogadores, como eu. De repente, antes de irmos para o campo, o Marlon contabiliza seis estrangeiros no onze e só podiam jogar cinco. ‘Fogo, ò mister, estão aqui seis’. O Raúl Àguas ficou todo fodido. ‘É por isso que não gosto de ter muitos estrangeiros na equipa’ e não sei que mais. Resumindo e concluindo, jogaram alguns menos utilizados e perdemos 5-2. Lembras-te do Hubart?
O guarda-redes, claro que sim.
O Hubart não fez um único jogo na época seguinte e foi mandado embora no Verão seguinte.
Então, porquê?
Foi um jogo triste. Eles abrem 2-0, nós empatámos com bis do Marlon e eles fazem 3-2, 4-2 e 5-2. O major veio falar comigo ‘porque é que não jogaste?’. E eu ‘ò major, quem escolhe a equipa é o treinador’. O major continuou a fazer-me perguntas e eu descartei-me ‘ò major, se você descobrir alguma coisa a meu respeito, eu sei que você lixa-me aqui e na Guiné porque você tem muito poder aqui e é amigo do presidente da Guiné’. Só assim é que me dispensou, mas chamou muita gente à pedra.
in Observador, Mar 2018