João Alves. ‘Eu era cá uma peste. Do pior’

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Tovar FC

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João Alves. ‘Eu era cá uma peste. Do pior’

A sua imagem de marca eram as luvas pretas, em homenagem ao avô Carlos, internacional português pelo Carcavelinhos e Académico do Porto nos anos 20 e 30, mas marcou o futebol português com a sua genial técnica. Deu-se a conhecer no Boavista, brilhou no Salamanca e encantou no Benfica.

A 14 de Novembro de 1970, ainda júnior do Benfica, começou a usar luvas pretas, dois dias depois da morte do avô. Em 1973 estava pronto para regressar ao Benfica, após uma época no Varzim, mas foi para o Montijo, a troco de 600 contos. Um ano depois (1974), Alves foi para o Boavista, onde fez duas épocas sensacionais com José Maria Pedroto. Venceu duas Taças de Portugal (a primeira delas resolvida com um golo da sua autoria, frente ao Benfica) e assinou contrato com o Salamanca.

Em Espanha, expôs todo o seu (enorme) talento. Resultado: foi eleito o melhor jogador estrangeiro e o jogador mais regular da Liga espanhola por dois jornais daquele país (“Marca”, de Madrid, e “El Mundo Deportivo”, de Barcelona), batendo uma concorrência de peso, como Cruijff (Barcelona), Kempes (Valencia), Breitner (Real Madrid)… Esteve um ano no Benfica e regressou ao estrangeiro, agora para o PSG, de França. Fracturou a perna logo na terceira jornada (entrada duríssima de Genghini) e voltou à Luz em 1980. Lá permaneceu três épocas, como titular indiscutível, até atingir o ponto de ruptura com Sven-Goran Eriksson, que não o chamou para o onze titular nos dois jogos da final da Taça UEFA, com o Anderlecht.

Acabou a carreira no Boavista, em Maio de 1985. Sempre com as luvas pretas, que só tirou quando abraçou a carreira de treinador, onde atingiu o ponto mais alto há 20 anos, com a conquista da Taça de Portugal, pelo Estrela da Amadora, numa final entre um clube de 1.a divisão e outro da 2.a (Sp. Farense), como ocorre amanhã, entre FC Porto e Chaves. É precisamente esse o ponto de partida para esta entrevista do i a João Alves.

Boa tarde João Alves. Falo de Portugal.

Pois, já percebi, pelo indicativo internacional (351).

E quero entrevistá-lo.

Tudo bem, mas aviso-o que estou na Suíça por causa do roaming.

Não há problema.

Você é que sabe. Diga lá então.

É tanta coisa que nem sei. Olhe, começo pela final da Taça de Portugal-90.

Grande dia. Ou melhor, grandes dias. Foram dois jogos extraordinários entre Estrela da Amadora e Sp. Farense [1-1 e 2-0, com golos de Paulo Bento e Ricardo na finalíssima, três dias depois da final]. Muito empenho, muita seriedade e um Jamor a abarrotar, com invasão maciça dos adeptos dos dois clubes e até de outros.

Então?

Eu bem vi bandeiras do Sporting e do Benfica misturadas com as do Estrela da Amadora. Foi a verdadeira festa da Taça. Um momento digno do futebol português.

Do que se lembra mais desses dias extrafutebol?

De uma tarja enorme em que se lia “João Alves para Primeiro-Ministro”, embora não me lembre se estávamos perto das eleições. E de uma cena inesquecível cá fora, depois de levantarmos a Taça, com os motards de Faro, que eram sei lá quantos, a fazerem um corredor gigantesco e a aplaudirem à medida que o autocarro do Estrela passava por eles. Até me arrepio todo só de recuar no tempo e rever esse episódio.

Com essa final, o João Alves levantou a quinta Taça de Portugal da carreira: quatro como jogador (duas pelo Boavista e mais duas pelo Benfica) e uma como treinador. Sabia que é o segundo mais condecorado?

Não fazia ideia, e quem é o primeiro?

O Pedroto, com seis (duas como jogador, ambas no FC Porto, e quatro como treinador, duas pelo FC Porto e outras tantas pelo Boavista, uma delas consigo na equipa).

Ah pois, então, mas quem mais? Foi um génio, um visionário.

Conheceu-o bem?

Devo-lhe muita coisa na carreira. Mas mesmo que não o conhecesse pessoalmente, vivi na sua época e é um treinador histórico para qualquer um. Ele fez do Boavista o Boavistão e do V. Setúbal uma equipa com nome na Europa que eliminou Inter e Liverpool. Duas equipas do meio da tabela que, de repente, ameaçaram os grandes e até acabaram o campeonato no segundo lugar (o Boavista em 1975- 76, a dois pontos do Benfica, e o V. Setúbal em 1971-72, a dez pontos do Benfica). Sem esquecer o trabalho dele no FC Porto. E sem esquecer que foi ele que me foi buscar ao Montijo e me levou para o Boavista, onde a minha vida desportiva ganhou outra dimensão.

Pois, daí foi para o Salamanca, não foi?

É verdade. Naquela altura as transferências dos jogadores portugueses para o estrangeiro não eram comuns, como agora. A saída era um acontecimento. Tirando as aventuras nos EUA, havia para aí uns seis na Europa [Humberto Coelho no Paris SG de França, Damas e Quinito no Racing Santander de Espanha, Carlos Alhinho no Racing White da Bélgica, Jordão e Bastos no Saragoça de Espanha]. E depois eu. O Boavista ganhou 12 mil contos do Salamanca pela venda do meu passe. Foi um óptimo negócio para todos.

E o que ganhou em Espanha?

Uma experiência sensacional. A liga espanhola era o campeonato mais charmoso do mundo, porque era o mais aberto aos estrangeiros, ao contrário de Itália, com as fronteiras ainda fechadas pela desastrosa campanha no Mundial-66 [a squadra azzurra foi eliminada na fase de grupos pela Coreia do Norte], e de Inglaterra. Aquilo em Espanha era um campeonato do Mundo domingo sim, domingo sim. Todos os fins-de-semana havia jogos com estrelas deste e daquele país. As equipas estavam bem reforçadas e isso animava qualquer um.

E como foi lá em Salamanca?

Tanta coisa. Na segunda época fui eleito o melhor jogador e também o melhor estrangeiro da Liga pela imprensa local, a “Marca” e “El Mundo Deportivo”. Não me lembro agora qual foi o jornal que me designou o quê. Sei, isso sim, que eram classificações acumuladas, com as pontuações dos jornalistas de jornada a jornada, e eu ganhei, com direito a prémio e tudo.

E guardou esses troféus?

Claro. Estão lá na minha casa. Fazem parte da mobília. São uma relíquia. Nessa época fiquei à frente de nomes consagrados como Cruijff (Barcelona), Kempes (Valencia), Luís Pereira (Atlético Madrid), Breitner, Netzer. Eu sei lá.

Disse dois nomes do Real Madrid (Breitner e Netzer), um clube que certa vez (16 de Janeiro de 1977) lhe proporcionou uma alegria ímpar.

Rectifico: uma dupla alegria. Nesse dia, não só nasceu a minha filha como ainda marquei o golo da vitória sobre o Real Madrid no Santiago Bernabéu. E que golo! Um dos melhores da minha carreira. Aliás, nesse dia, estava endiabrado. Emocionado com o nascimento da minha filha, fiz trinta por uma linha, saltei, corri, fintei, defendi, ataquei. Fiz tudo e mais alguma coisa. E o golo. Fui eleito o melhor em campo [nota 4 do “El Mundo Deportivo”, de 0 a 5] e o pobre do defesa esquerdo, que se chamava Janssen, teve de ser substituído ao intervalo porque não estava a conseguir impor-se a mim.

Mas então, e o Camacho?

Devia estar lesionado ou suspenso. Sei que nesse dia não jogou. E ainda bem porque na época seguinte calhou-me ser ele a marcar, num outro Real Madrid- -Salamanca, e ai Jesus. O homem era um lateral implacável, daqueles que não dava hipótese. Anos mais tarde, encontrámo-nos em Lisboa, com ele no banco do Benfica, e divertimo-nos a lembrar essas histórias da Liga espanhola dos anos 70.

Deu-se bem em Salamanca, portanto. E no Paris SG?

Entre essas duas aventuras, ainda joguei um ano no Benfica, mas não ganhei nada.

Foi o ano do FC Porto. De quem, Pedroto?

Pois claro. Quem mais? Só ele para me fazer passar um ano no Benfica sem ganhar nada. Foi então que apareceu o Paris SG e contratou-me por um balúrdio [32 mil contos]. Cheguei a Paris com o estatuto de estrela internacional, como o mais bem pago do plantel [50 mil francos por mês, qualquer coisa como 7600 euros]. O presidente deles [Francis Borelli] tinha acabado de me ver em acção na final do Torneio de Paris, em que o Benfica goleou o Estrela Vermelha por 4-0, e queria empurrar o PSG para junto dos grandes do futebol francês e também queria aproximar o clube da comunidade portuguesa em Paris, que vibrava com o PSG, criado apenas em 1970. Mas antes do PSG, o Bordéus estava na jogada. Dois ou três dias depois de saber dessa novidade, e comigo de férias em Roma, recebo um telefonema do tal presidente do PSG a dizer-me isto, aquilo, aqueloutro e lá fui para Paris.

E como foi?

Tenho boas recordações.

Mas então lesionou-se logo no segundo jogo?

Sim, sim, mas isso não invalida que não tenha gostado de ter vivido em Paris, não invalida não ter gostado de partilhar as emoções com os adeptos no Parque dos Príncipes. A lesão marcou-me. No joelho. Na cabeça. E no coração. Mas basta de coisas negativas. Vou contar-lhe uma história: na estreia, em casa, com o Marselha, e o Marselha de Trésor, Six, Linderoth e Temime [que acabaria por descer de divisão], o PSG ganhou 2-1 e eu joguei tão bem que o estádio todo, e falo de 40 mil pessoas [para o jornal “L’Équipe”, foram 43 845], entoou o meu nome. Alves, Alves, Alves, até eu desaparecer no túnel de acesso aos balneários. Que coisa maravilhosa! Nessa semana fui eleito para a equipa da jornada, ao lado de um tal Platini, do Saint-Etienne. Os franceses sempre gostaram de médios ofensivos, com gosto pelo passe, pelo risco, pelo golo.

E no segundo jogo…

Em Sochaux sofri uma falta do Genghini, que me partiu todo em três sítios. Fui levado de helicóptero para Paris e fui operado duas vezes num curto período de tempo. Não houve maldade do Genghini, mas fiquei de fora dos relvados por cinco meses. Quando voltei, em Janeiro de 1980, já não era o mesmo.

Guarda rancor do Genghini?

Não. O Genghini ligou-me muitas vezes para o quarto do hospital a saber como estava e acompanhou a minha recuperação. Foi um lance fortuito, pronto. O árbitro é que nem assinalou falta, quanto mais mostrar um cartão, fosse de que cor. O lance foi bastante mediatizado, as televisões davam o lance da falta vezes sem conta e tornou-se caso nacional. Por isso, o árbitro foi irradiado. Sabe o que aconteceu?

Não. O quê?

Em Metz, já nos anos 90, quando eu já era treinador do Estrela e fomos participar num torneio indoor, daqueles de Inverno, quando acabou o jogo, uma pessoa veio ter comigo a pedir-me desculpa por não ter assinalado falta nem ter mostrado o cartão. Era ele, o árbitro. Foi um gesto nobre e corajoso da sua parte que muito me emocionou.

Por falar em emoções, a sua imagem estará sempre relacionada com as luvas pretas, tradição do seu avô, Carlos Alves. Que sentimentos guarda dessa relação familiar?

São coisas inexplicáveis. De certa forma, fui educado por ele. No futebol. E também na vida. Os meus avós acompanharam-me sempre, tal como os meus pais, mas o meu avô incutiu-me o valor e o prazer do futebol. No final dos anos 60, o meu avô treinava a Sanjoanense e inscreveu-me no plantel dessa equipa porque eu tinha um certo jeito para a coisa.

Mas como é que a tradição das luvas pretas começaram?

Com esse meu avô, um dos grandes futebolistas da sua geração, com presença assídua na selecção, célebre por ter chegado aos quartos-de-final dos Jogos Olímpicos-28, em Amesterdão. Ele, na altura, jogava no Carcavelinhos quando foi jogar com o Benfica. Momentos antes, uma menina aproximou-se dele e pediu–lhe que jogasse com as suas luvas pretas calçadas. Ele, que era defesa, explicou-lhe que não poderia satisfazer o seu pedido, pois o futebol e o jogo em questão eram assuntos demasiado sérios para estas brincadeiras. A menina calou-se mas não desistiu. Ao intervalo, com o Benfica em vantagem, o meu avô descobriu dentro dos bolsos dos seus calções o pequeno par de luvas pretas que ela ali colocara sem autorização. O meu avô calçou então as luvas e começou a segunda parte. E não é que o Carcavelinhos deu a volta e ganhou jogo. A partir daí, o meu avô jogou sempre com as luvas.

E você?

Sempre tive receio, medo, de usar as luvas. Coisa de crianças, adolescentes. Sei lá, nunca me senti à vontade para usá-las. Mas a morte do meu avô mexeu comigo e o seu último pedido foi que a tradição das luvas passasse para mim. Dito e feito. Dois dias depois da morte do meu avô, a 14 de Novembro de 1970, num Malveira-Benfica (0-4), para o campeonato nacional de juniores, prestei homenagem ao meu avô. E decidi ser sempre assim.

Alguma vez marcou com a mão?

Não.

Algum árbitro chateou-o por usar as luvas?

Nenhum.

E agora?

Agora, vejo luvas por todo o lado, sobretudo no Inverno. Eu vestia-as em qualquer altura do ano.

Até na selecção?

Sim. E sabe quem me lançou?

Vou tentar adivinhar. A sua carreira é Pedroto, Pedroto e mais Pedroto. Portanto, Pedroto…

Bolas, já não se pode dar novidades a ninguém.

Acumulou 32 jogos, mas não jogou nenhuma grande prova. Como é que explica?

Não quero entrar por aí. Olhe, não vale a pena. Eram outros tempos, em que os jogadores do Sporting e do Benfica eram mal recebidos lá em cima, no Porto. Éramos cuspidos e insultados pelos adeptos nos treinos, nos jogos. A estrutura da federação também não funcionava por aí além. E os jogadores eram de uma qualidade fantástica. É só enumerar: Bento, Humberto Coelho, Jordão, Nené e outros, muitos outros. Mas a mentalidade desses tempos era uma coisa… Nem vale a pena ir mais além.

E vale a pena ir mais além para tentar saber o que aconteceu na véspera da final da Taça UEFA-83?

[ri-se] É pá, você também… Pois, eu e o Eriksson é uma história antiga. Eu não joguei a final com o Anderlecht. Porquê? Nunca soube. Posso tentar adivinhar. Na meia-final, em Craiova (Roménia), fiz um teste físico e não estava em condições de jogar. O Eriksson colocou então o Strömberg e foi com ele até à final. Ou será que ele pensou que eu estivesse a fazer fita? Num treino, depois disso, eu e ele discutimos mas uma coisa normal, sem história e até própria da tensão da proximidade de uma final europeia. Destas três… Mas tem de ser o Eriksson a escolher porque eu não sei o que passou para não jogar a final de início [Alves não foi utilizado em Bruxelas e só entrou aos 62′ na Luz].

Você e o Eriksson a discutirem num treino? Mas ele não era um paz de alma?

Sim, era. Eu é que era cá uma peste. Do pior. Fui melhorando com o tempo.

Quando levantou a Taça de Portugal em 1990, pelo Estrela da Amadora, já era mais calmo?

Ah, sim, bastante mais calmo. Mais até que o treinador adversário.

Imagino, também comparar-se com o Paco Fortes é…

Bem sei, bem sei. Ele estava sempre eléctrico, aos pulos, com a cara vermelha de tanto barafustar, mas era competentíssimo. Sabe que cheguei a defrontá-lo como jogador, em Espanha? Eu no Salamanca, ele no Barcelona.

Ele é mais eléctrico do que o Luis Fernández [o histérico treinador de Israel, que começou a jogar futebol aos 19 anos, no PSG, com Alves]

São muito parecidos, de facto. O Luis ainda é um grande amigo meu. Telefona- -me com frequência a perguntar por jogadores portugueses. Demo-nos muito bem em Paris, porque ele era novo, queria aprender, pedia-me conselhos e era um bom ouvinte.

in jornal i, Mai 2010

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