Elza Soares. ‘Quero fazer um museu para Messi e Ronaldo conhecerem o Mané’

Mais You Talkin' To Me? 01/21/2022
Tovar FC

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Elza Soares. ‘Quero fazer um museu para Messi e Ronaldo conhecerem o Mané’

É magia. Em pleno coração de São Paulo, redefinimos os sete pecados capitais. Nada de avareza, gula, inveja, ira, luxúria, orgulho e preguiça, isso não é para nós. O nosso ‘negócio’ é arroz, carne, laranja, torresmos, couve-mineira, farofa e caipirinha de maracujá. Qual é a coisa qual é ela…

Deixemo-nos de charadas, é feijoada. Coisa boa. A seguir, sesta. Depois, Hotel Unique, encostado ao majestoso Parque Ibirapuera. As indicações para a última obra-prima da capital paulista são preciosas: autocarro 576A-10 no número 660 da Rua Helvetia e “só” 48 minutos de viagem, com um pormenor delicioso – sem trânsito. Se for com, é que já é mais complicado. O autocarro anda uns poucos minutos e depois pára. Sem mais nem menos, o condutor desliga o motor e proíbe todos os passageiros de sair, “por falta de condições”. Lá fora desenvolve-se um protesto contra o aumento do bilhete de autocarro, de 3 para 3,20 reais, aplicado a partir de 1 Junho, rapidamente transformado em batalha campal entre manifestantes e polícia. A tensão começa na Avenida Paulista e propaga-se nas ruas circundantes. É uma confusão danada. Os helicópteros acumulam-se, os cavalos também (falamos da polícia montada, esclareça-se). Os outros fogem.

O nosso autocarro continua impávido e sereno no meio da rua, juntamente com ambulâncias ruidosas. Algumas pessoas no autocarro aproveitam a inesperada folga para avisar quem de direito, outras agarram-se ao Facebook e até há quem durma. Tsss tsss, vergonha. Só 40 minutos depois é que o autocarro volta a trabalhar, depois de a polícia ter dispersado os malandros que se entretêm a escrever 3,20 em todos os autocarros. Bom, é a dica para sair definitivamente de São Paulo. Até seria engraçado embarcar na aventura de contrastar São Paulo com Goiás, onde um tribunal reduz a tarifa dos bilhetes de autocarro de 3,00 para 2,70 reais, mas não, o trabalho chama-nos em Brasília, onde hoje começa a Taça das Confederações entre Brasil e Japão, com o português Pedro Proença no apito.

Isso mesmo, em Brasília (quem não conhece os grandes clubes de futebol da capital do Distrito Federal), num estádio cujo custo estimado já ultrapassa 100% o orçamento. ‘Tá bonito, ‘tá. Como se isso fosse pouco, a FIFA quer mudar à força o nome: que passe de Estádio Mané Garrincha para Estádio Nacional, para “evitar confusões com os estrangeiros”. É insensato, até inapropriado, mas a ideia encontra um apoiante – nada mais nada menos que Agnelo Queiroz, governador do Distrito Federal. Que braço-de-ferro: de um lado a FIFA e o governo, do outro…

Até dá vontade de chamar os manifestantes de São Paulo, mas calma, também não é preciso tanto. Porque Elza Soares chega “no pedaço”. O tribunal dá-lhe razão e não se muda o nome do estádio coisa nenhuma. É Mané Garrincha e está muito bem. Outra decisão não seria de esperar, sim, mas quem é Elza Soares? Uiii, isso é muito complicado. Fiquemo-nos pelo básico: Elza Soares tem 75 anos de idade, eleita cantora do século XX pela BBC e (ainda) é rainha de samba, bossa nova, MPB (Música Popular Brasileira), sambalanço, samba rock e hip-hop.

Muito bem, agora a pergunta que se segue é o porquê de Elza desafiar a FIFA e o governador. É a segunda mulher de Garrincha. Durante 14 anos, de 1968 a 1982, Elza e Mané vivem um amor intenso e pouco comum, porque Garrincha ainda está casado com Nair quando começa a ser visto com Elza na noite do Rio de Janeiro. A pressão é tanta que Elza é apelidada de “destruidora de lares” numa campanha nacional pelas rádios e é maltratada pelos adeptos do Botafogo (clube de Mané) através do lançamento diário de ovos e tomates à porta da sua casa. Elza, juntamente com Garrincha, é expulsa do país pela ditadura brasileira. Fica o aviso, Elza Soares tem cá uma história.

Se pudéssemos, ficaríamos a falar com ela o dia inteiro sobre música. Depois, política. A seguir, vida familiar. Futebol, Garrincha, Mundial-62. Começamos pelo fim. “Fui para o Chile para ser a madrinha da selecção, não para ver o Mané.” Na altura, Elza já tem um lugar na música brasileira, com cinco álbuns. Às tantas, dá de caras com Louis Armstrong, O Louis Armstrong. “Disseram-me para chamá-lo my father mas eu nunca iria dizer mai fóder, né? Após muita insistência, lá disse e ele gostou. Reconheceu-me e convidou-me para entrar na banda dele mas eu não podia, tinha muitos filhos.’

Ainda Chile, agora com a selecção brasileira. ‘Fui convidada por um empresário uruguaio e aceitei. Fui assistir a dois treinos em Teresópolis e depois visitei-o [Garrincha] no estágio em Friburgo [RFA]. Mas apenas conversávamos. O Mané pediu para falar comigo, disse que estava surpreendido com a forma como eu cantava e acrescentou que a cubana Celiz Cruz e o trombonista J. J. Johnson lhe tinham oferecido discos. Fiquei espantada ‘cara, você conhece o J. J. Johnson?’ Na hora de ir embora, ele deu-me um beijo e eu não quis ficar atrás, seria falta de educação.’

O avanço na relação dá-se no Chile? perguntamos aos nossos botões. Elza nem faz compasso de espera. ‘Havia lá um cara muito bravo que tomava conta dos jogadores, o Paulo Amaral [treinador do FC Porto em 71/72], mas ele gostava de mim e levou-me para fazer uma visita. Na nossa conversa, imagina só, falei-lhe da minha preocupação à escala nacional sobre a falta de arroz, feijão, soja. Sabe o que Mané disse?’ No idea. “É inesquecível: ’não se importa não, tenho um sítio [fazenda] e quando voltar vou abastecer vocês, desde que me faça uma feijoada.’” A dos sete pecados, está mais que visto.

Os dias passam, o Brasil entra em acção e ‘o Pelé lesiona-se’. ‘Durante um almoço da selecção, chega aos ouvidos da selecção brasileira que o Di Stéfano [figura incontornável do Real Madrid, melhor jogador do mundo e naturalizado espanhol] disse que o Brasil não tinha qualquer hipótese de revalidar o título, ‘nem com 11 Garrinchas em campo’. Quando essa notícia chegou, a selecção estava a almoçar. Eu também estava lá. O Mané ouviu aquilo, levantou-se e falou: ‘Gente boa, acabo de pedir a Elza em namoro e vou jogar para ela.’ Admito que fiquei com um pouco de medo, nem acreditei. Eu nem sabia direito o que era uma Copa do Mundo.’

Bom, a verdade é que o Brasil acelera rumo ao bicampeonato. Nos ¼ final, 3-1 vs Inglaterra com bis de Garrincha. Nas meias, 4-2 ao anfitrião Chile, outro bis de Garrincha. Na final, 3-1 à Checoslováquia. O Brasil é bicampeão sem Pelé e Mané é eleito o melhor jogador do Mundial. A partir daí, Garrincha começa a entrar em declínio. Falha muitos treinos e é dispensado do Botafogo em 1965, com 32 anos de idade. Ainda vai ao Mundial-66, em Inglaterra, onde perde pela primeira e última vez com a selecção em 61 internacionalizações (3-1 vs Hungria), a três dias de ver a eliminação na fase de grupos aos pés de Portugal do banco de suplentes.

A bebida consome-o completamente. Elza separa-se em 1982. ‘Foi muito, muito difícil, mas tinha de o fazer senão ele matava o meu filho [Garrinchinha, filho dos dois, nascido em 1977 e falecido em 1986, num acidente de viação]. Pegava o menino pelos pés à beira da piscina enquanto gritava ‘vou soltar’. Quando bebia ficava agressivo. Quando passava a bebedeira, ficava cabisbaixo. Aquele negócio Dr. Jekyll e Mr. Hyde, sabe?’

Mas… ‘nunca ouvi um palavrão da boca dele, era gentil com os pássaros e tinha muito humor. Sumia para o mato, dizia ‘criola, tô indo’, vivia sem camisa, com aquela sunga, as pernas tortas [a perna direita de Garrincha é seis centímetros mais curta que a esquerda, ambas inclinadas para o lado esquerdo]. Sabe o que é? Tudo o que acontece hoje no futebol brasileiro começou com ele. O Mané é a cara do Brasil desde sempre e poucos o conhecem. Os jogadores de hoje não o citam como deviam. Quero fazer um museu para o Messi e o Cristiano Ronaldo conhecerem o Mané.’

Uau. ‘Todos o devem conhecer bem, muito bem, porque o Mané era tranquilo e nada metido a besta. Para conquistar o Mané, o negócio era simples demais, bastava fazer uma boa comida. Pratos de peixe, principalmente. Eu fazia uma peixada na panela de barro, com pirão, muito coentro e pimenta. Ele chegava a casa e já sabia ao que ia. Depois dizia que ele tinha outro peixe para comer. Prefiro falar assim com essa ironia muito dele, o Mané era um ‘p*** de um amante’, bom demais. E muito, muito genuíno: olhava para o céu, espantava-se com as estrelas e dizia-me: ‘Meu Deus, como essa gente é boba, não sabe que vai viver por um tempo tão curto, para quê ficar preso a tanta coisa, não vai levar a nada.’

Então e porquê aqueles problemas todos com o país inteiro? ‘Falsos moralistas, uma coisa meio absurda. Ninguém fala que eu cantava por todo o Brasil em cima de camião para dar de comer às meninas dele [do anterior casamento com Nair] porque ele não tinha como pagar a pensão. Quem ganhava era eu. Fiz tudo com ele, até engravidei. Quis sempre o melhor para ele, incluindo uma casa em Jacarepaguá para morarmos com as sete filhas dele, com mordomo e governanta. Sabe o que ele fazia com o mordomo? Mandava-o sentar-se na mesa para comer com todo o mundo. Não gostava nada de o ver sempre de pé atrás dele.’

Os falsos moralismos não terminam por aqui. ‘Em 1970, ele foi-me buscar a um show e, de repente, imensos homens armados à volta do nosso carro. Como o trânsito estava parado, não houve como eles nos intimidarem, porque as pessoas à nossa volta reconhecerem-nos e o que os outros queriam fazer de mal era só às escondidas. Então seguiram-nos até casa, no Jardim Botânico, e metralharam-nos a casa toda, sem critério algum. Nunca soubemos o motivo. Quando acordámos, estávamos em Itália com o Chico Buarque. Vimos a final do Mundial-70 [4-1 vs. Itália] num quarto de hotel com o Mané a soluçar de tanto chorar. Um homem como ele ser expulso do país é um absurdo, o cara nada tinha ver com política. Só futebol e caça.” E a feijoada? ‘Bem lembrado, feijoada sempre.’

in jornal i, Jun 2013

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